São Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 1995
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Números que surpreendem o mundo

JOSÉ MARTINS FILHO

É no mínimo surpreendente o relatório recém-publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no que concerne a algumas conquistas sociais no plano da saúde e da educação nos últimos 35 anos.
Considerando um universo de 101 nações em desenvolvimento e de outras 35 em situação de pobreza crônica, o relatório constata que entre 1960 e 1990 a expectativa de vida nesses países subiu em média de 46 para 62 anos, e a escolaridade básica de 48% para 77% entre crianças de 6 a 11 anos; paralelamente, enquanto a taxa de mortalidade infantil caiu de 216 para 107 em cada mil nascimentos, o número médio de filhos por casal decresceu de 6 para 3,8.
Seja porque informações positivas como essas são pouco divulgadas, seja porque o catastrofismo se tornou uma doença do nosso tempo, chega a ser desconcertante admitir que, nos últimos cinco anos, os chamados países em desenvolvimento realizaram progressos relevantes no combate à desnutrição, nos níveis de imunização de doenças endêmicas e epidêmicas, nos programas de aleitamento materno, nos projetos de planejamento familiar e nos esforços para ampliar as metas de alcance da educação básica.
O que isso significa na prática? Que -atendo-nos somente ao campo da saúde- o número de mortes infantis será reduzido, somente este ano, em 2,5 milhões em relação a 1990. Não é um dado desprezível.
Ninguém propugna que o planeta se tornou um paraíso a partir da queda do muro de Berlim -estamos certamente muito longe disso-, mas o fato é que desde o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança (Copenhague, 1990), com a presença de 150 representações governamentais (inclusive 71 chefes de Estado), muita coisa melhorou.
Naquela ocasião, foram estabelecidas metas de desenvolvimento social até o fim do século. No que concerne aos indicadores de melhoria das condições de vida da criança, é preciso reconhecer que pelo menos uma centena de países parece prestes a cumprir as metas intermediárias estabelecidas até 1995, com boas possibilidades de que venham a fazer o mesmo nos próximos cinco anos.
Calcula-se que, para o atendimento das necessidades mundiais em saúde e nutrição, educação básica, saneamento básico e planejamento familiar, se necessite de recursos adicionais anuais de US$ 34 bilhões. Considerando-se que, só com o consumo de cerveja, a população mundial gasta por ano US$ 160 bilhões, US$ 400 bilhões com o consumo de cigarro e US$ 800 bilhões com investimentos militares, aquelas necessidades não são nada exorbitantes.
Não se trata de propor a idéia franciscana de que alguém deixe de tomar vinho em Londres para que uma criança se salve em Bangladesh, mas de desmascarar o mito malthusiano de que o mundo está tecnicamente impossibilitado de solucionar seus problemas sociais imediatos, especialmente os relacionados com a infância.
Queiramos ou não, o Brasil também melhorou, embora em proporções muito menores do que seu crescimento econômico, industrial e agrícola. Basta ver que a taxa de mortalidade infantil, que era de 118 por mil há 35 anos, é hoje de 52 -em todo caso não menor que a de países como Marrocos (48), Egito (46), Filipinas (45) e Botsuana (43), para não falar de Argentina (24), Itália (7) e Nova Zelândia (7).
Pesam em nosso desfavor, naturalmente, os 32 milhões de miseráveis cujo quadro de desnutrição crônica é a explicação mais óbvia para isso. Quase custa crer que se esteja falando da nona economia mundial, cuja produção agrícola é suficiente para alimentar 300 milhões de pessoas.
O fato é que no Brasil, como em outros países em desenvolvimento, as conquistas sociais das últimas décadas se tornaram possíveis apesar do agravamento do quadro de desigualdades sociais. Isso significa que a melhoria se deu em todos os patamares, porém particularmente em favor dos mais ricos.
O relatório da Unicef mostra que, hoje, a quinta parte mais rica da população detém cerca de 85% do PNB mundial, enquanto a quinta parte mais pobre possui apenas 1,4%. Aos que sempre estão prontos a argumentar que, historicamente, o trabalho é que estabelece tais diferenças, não custa recordar os séculos de colonialismo (ou seja, de espoliação econômica) a que foi submetida a maioria das sociedades mais pobres, bem como, hoje, os ajustes estruturais draconianos determinados internacionalmente e os juros escorchantes sobre as dívidas, obrigando a cortes internos bruscos nos investimentos em saúde e educação no Terceiro Mundo.
Seja como for, é um alento que a Unicef, ao mesmo tempo que pondera que ``o impulso em direção a sistemas econômicos de livre mercado era necessário", seja o primeiro a denunciar tão abertamente tais desigualdades.
Esse tipo de clarividência era impossível há 20 anos, quando, como diz Betinho, ``lutar contra a miséria era um subproduto da luta contra o capitalismo". O que não impede absolutamente que se celebrem hoje as conquistas sociais anunciadas pelo relatório da Unicef. Mais importante que celebrar, entretanto, é perseguir as metas futuras e cumpri-las. Ainda há tempo.

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