São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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Classe média ignora 'preço real' das coisas

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Antes do Plano Real, reclamava-se de como os preços subiam. Atualmente, a reclamação é outra. Os preços não sobem, mas estão altos demais. Em especial, para quem é de classe média.
Não gosto muito da expressão "classe média", tal como é usada no Brasil. O sujeito tem altos padrões de consumo, casa em Campos do Jordão ou no Guarujá, dois carros, duas empregadas, viaja sempre que pode, mas se considera -e é chamado de- "de classe média" só pelo fato de não ser tão rico quanto o Antonio Ermírio.
Seria mais correto dizer que há uma classe alta baixa, e não uma classe média alta, a frequentar restaurantes caros, a orientar padrões de consumo, a reclamar e a "formar opiniões (outro termo desagradável) no Brasil.
Qual a diferença? Uma classe média alta seria a de quem, tendo boa renda mensal, é ainda "classe média" pelo ambiente em que vive, pelas idéias que professa, pelo bairro em que mora.
Há uma classe média alta em São Caetano, construindo espaçosas e feias casas de praia em Mongaguá. Com o mesmo dinheiro, há uma classe alta baixa em Higienópolis, tomando café na praça Villaboim; um amigo, arquiteto, projeta para a família um chalezinho delicioso perto de Parati. Mas como está caro o material de construção!
Entre outras coisas, é essa diferença que ajuda a definir o que é direita e esquerda no Brasil. A classe média alta, ascendente, não quer perturbações ideológicas em rumo; algo deseducada ainda em termos de gosto, preferiu Jânio a Suplicy.
A classe alta baixa encontra em Fernando Henrique um Collor com o pé na cozinha, capaz de manter o status quo sem esquecer os 10% da taxa de serviço.
Mas agora começa a reclamar um pouco. Surpreende-se com o preço das coisas.
Há, de fato, dados surpreendentes. A Folha publica, aos domingos, uma seção chamada "Compare e Escolha", no caderno Cotidiano, que vale a pena ler.
Domingo passado, comparavam-se os preços de dois potes de creme hidratante da mesma marca. Em Nova York, custa R$ 8,40. Em São Paulo, com metade do volume, custa R$ 18,80.
Em edições anteriores, o leitor pôde verificar a mesma disparidade no que se refere a vestidos de grife, pizzas, sapatos, shows de rock, entradas de cinema. E os livros? As passagens de avião? É simplesmente insuportável!
Continua sendo negócio mudar-se para Nova York. Sem pagar a passagem de volta.
Outro problema que continua, mais de um ano depois da mudança de moeda e do fim da inflação, é a extrema disparidade de preços. Um eletrodoméstico chega a custar o dobro na loja A, se comparado o preço da loja B.
Como é que, até hoje, as pessoas ignoram "o preço real" das coisas? Fez bem o governo, ao iniciar uma campanha publicitária esclarecendo ao consumidor o valor médio de diversos produtos, advertindo-o no caso de estar pagando demais por eles.
Será que a "cultura inflacionária" insiste em distorcer os preços, tanto tempo depois de praticamente extinta a inflação?
Um editorial da Folha, publicado há algum tempo, explicou o fenômeno, numa linha de argumentação com que concordo. O problema é de distribuição de renda.
Como sobra dinheiro para alguns e falta para muitos, aqueles que têm dinheiro sobrando não se importam em pagar preços extorsivos.
Há uma faixa de consumidores que não pesquisa preços, sustentando assim determinados abusos do comércio.
O raciocínio deve ser verdadeiro; mas o que tem de espantoso é o fato de que a tal faixa de consumidores seja grande o bastante para que a situação persista tanto tempo. Ou seja: você, comerciante explorador, pode continuar cobrando caríssimo, pois há uma verdadeira massa de clientes sem nenhuma idéia do que se passa na loja ao lado ou no canhoto do talão de cheque.
Não há outra explicação. Deve ser isso mesmo. Mas, se é assim que as coisas funcionam, onde foram parar as famosas leis do mercado? Por que a loja que vende mais caro não fica deserta, sendo assim forçada a baixar os preços?
Sou um economista amador, um consumidor irracional, um comodista por natureza. E vejo em meu comportamento algo que pode explicar essa aparente infração às leis do mercado.
Evidentemente, não é apenas o melhor preço aquilo que decide a mente de um consumidor. Pago mais numa loja perto. Pago mais até para não perder tempo pesquisando preços.
Espanta-me que alguém reclame de pagar muito por uma sopa ou um pastel num restaurante chique. Quisesse pagar barato, não fosse a um restaurante chique. Lá se cobra não o preço físico da sopa ou do pastel; cobra-se pelo ambiente, pela frequência, pelo fato de lá haver gente bonita -e dinheiro sempre atrai beleza.
Paga-se pela comodidade. Pois não há nada mais paulistano do que a hesitação, nos sábados à noite, quanto ao restaurante em que se deve ir. Dá um branco. Ninguém tem idéia nenhuma. No fim, todos concordam -ah, vamos de uma vez ao N... Já sabem que pagarão pela preguiça. Vai ser caro. Ora, não reclamem.
Ou então deixarão de pertencer à classe a que pertencem. Passarão a ser simplesmente malufo-janistas-rossi da classe média, e não fernando-suplicistas da classe alta baixa.
Talvez os altos preços vigentes no Plano Real operem esse milagre, confundir as pessoas de mesma renda numa mesma classe média, sem as pretensiosas distinções que separam São Caetano de Higienópolis, os Jardins da Mooca. Fernando Henrique Cardoso provavelmente perderá eleitores nessa revolução social. Mas o que é perder eleitores, quando uma tarefa histórica está em jogo?

Correção
No artigo anterior, expressei a esperança de que brinquedos alusivos a uma fase fálica fossem inventados. Uma psicanalista observou: a maior parte dos brinquedos de crianças já são alusivos à fase fálica -revólveres, espadas de plástico. E nenhuma criança, por meio de brinquedos, deixa de ser criança, ou sublima suas inconveniências naturais.

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