São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Neo-social", esquerda e realismo

FÁBIO WANDERLEY REIS

Em vez de ser um mero xingamento, a frase agressiva em que se destemperou há algum tempo o coloquialismo de nosso presidente ("não é preciso ser burro para ser de esquerda") já indicava certo desconforto no empenho de acomodar o realismo exigido do chefe do governo com seu passado esquerdista.
Ei-lo agora a repelir de novo o rótulo de "neoliberal" e a proclamar-se "neo-social" -presumivelmente uma posição de esquerda. De qualquer modo, cabe imaginar que exista, na visão do presidente, espaço para uma esquerda inteligente que seria "realista" e, como tal, afim às posições do governo.
Há tempos a direita pretende que a lucidez é prerrogativa sua. Contra o sonho das esquerdas, as "duras réplicas da história", que imporiam a necessidade de atenção pragmática e realista aos fatos. Mas um componente importante do ideário de esquerda sempre denunciou a miopia desse suposto realismo da direita, enquanto reivindicava para si a verdadeira lucidez que se revelaria com a adequada perspectiva de tempo: não obstante superficiais idas e vindas, a escada rolante da história (na imagem irônica do velho professor Louis Hartz) levaria ao inexorável futuro socialista.
É grande a confusão. Por um lado, entre as razões que a direita (e não só ela) encontra para apontar a estupidez da esquerda, destaca-se a rigidez mental que resultaria justamente da visão determinista da história como escada rolante, à qual seria preciso contrapor a abertura intelectual disposta a apreciar com flexibilidade os eventos que emergem em qualquer momento dado.
Por outro lado, a lucidez na apreciação dos eventos não pode significar senão a capacidade de avaliar seu significado em termos prospectivos -ou seja, de apreender as tendências (e, portanto, as determinações) que neles se expressam e assim habilitar-se a agir de maneira eficiente no mundo novo que tais tendências criam.
Seja o presidente realmente "de esquerda" ou não, a distinção entre direita e esquerda certamente não perdeu relevância, ao contrário do que se tem sustentado a propósito da derrocada do socialismo. Podemos ter, sem dúvida, a convergência ocasional na apreciação analítica dos fatos (onde a questão de realismo, acuidade ou burrice se coloca); além disso, esquerdistas e direitistas honestos podem concordar a respeito de alguns valores fundamentais (e é bom que o façam, ou o próprio convívio democrático se tornará impossível).
Mas há valores também importantes que entram em choque e disputam prioridade, dando conteúdo suficientemente preciso às posições sintetizadas nas duas categorias: a ordem e a eficiência da dinâmica capitalista em um caso, a igualdade e a promoção social dos destituídos em outro.
Em certo nível, é claro, todos queremos eficiência e somos todos simpáticos à idéia de igualdade: mas qual o equilíbrio a ser buscado entre os imperativos da acumulação capitalista e o desiderato da redistribuição social? Até quando fazer crescer o bolo, quando começar a distribuí-lo? Há aqui escolhas e barganhas fatais que estão longe de resolver-se de todo em termos de análise arguta e apego aos fatos.
Naturalmente a referência factual decisiva das discussões correntes se tem nas novas tendências do cenário mundial: a derrocada do socialismo e a dinâmica tecnológica e econômica ligada à globalização. Mas o aspecto curioso do debate, em sua face propriamente analítica e factual, consiste em que existe a presunção generalizada de que somente a esquerda tem razões de perplexidade.
Afinal, a queda espetacular do socialismo pode ser lida como o "fim da história" e a superação definitiva da forma de organização política e econômica que sempre serviu à esquerda como modelo alternativo. A verdade, contudo, é que sobram razões de perplexidade à direita. Quais são realmente os fatos que temos pela frente? O que, nas "novas tendências", além de "novo", corresponde a "tendências" efetivas?
Qual é o diagnóstico correto dos processos que defrontamos, com base no qual possamos vir a estar seguros dos prognósticos que façamos -e evitar, assim, transformar nossas ações dirigidas ao futuro em meras apostas mais ou menos irracionais? Lembremos o México e a avaliação feita por Michel Camdessus da grande crise mexicana recente: a primeira crise do século 21.
Mas isso não é tudo. Pois não há como escapar dos valores e das escolhas, donde se podem apontar dois desdobramentos. Primeiro, que as novidades, mesmo quando correspondam a tendências reais, podem merecer ser avaliadas como boas ou ruins e podem eventualmente justificar ações que se lhes oponham, ao invés de convergirem.
Em contraste, certas posições governamentais aparecem claramente como expressões de uma "ideologia do moderno", na qual algo se transforma inquestionavelmente em valor a ser almejado se pode ser apresentado como correspondendo a tendências "novas" no plano mundial. Segundo: na falta de decidida opção fundada em valores, tomar decisões governamentais congruentes com os rumos espontâneos da dinâmica capitalista (cujo caráter socialmente perverso a globalização não faz senão intensificar) parecerá sempre mais realista -e "realismo" equivalerá sempre a remeter para um futuro indefinido a cura de nossas desgraças sociais.
Mas há nessas desgraças urgências inadiáveis. E o governo de um cientista social que reclame pertencer à esquerda lúcida só virá a ter a marca apropriada se a lucidez for o trunfo para garantir resposta inventiva e eficaz a elas. Sem muito neo-nhenhenhém.

Texto Anterior: Sem terra e sem capital
Próximo Texto: Eleições S/A; Fundo do poço; Ataques a Nossa Senhora; Correios; Criança fora do estádio; Cigarros; Gastos na saúde; Excesso de propaganda; Revista da Folha
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.