São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O ANJO EMBRIAGADO

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

O jornalista Ruy Castro diz que o objetivo de uma biografia é revelar o ser humano para quem se habituou a só ver o herói e mostrar o herói para quem só teve a chance de conhecer o ser humano.
Ao final de "Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha", o leitor verá que Ruy Castro alcançou a meta pela terceira vez.
Como já havia feito com João Gilberto e companhia, em "Chega de Saudade" (1990), e Nelson Rodrigues, em "Anjo Pornográfico" (1993), o jornalista faz aqui um retrato eminentemente jornalístico da vida e da obra de Garrincha.
Isso significa dizer que se trata de um relato repleto de fatos e minguado de adjetivos. Impressiona tanto pelos detalhes que permitem visualizar o esplendor do jogador quanto pelos pormenores sobre a decadência física do ser humano, que um biógrafo-fã poderia ter achado mais cômodo não descrever de forma tão rica.
Ao final das 536 páginas de "Estrela Solitária", o leitor não terá dificuldade para entender, primeiro, por que ainda há quem sustente que Garrincha foi melhor jogador até do que Pelé. Depois, compreenderá por que e como se processou a vertiginosa decadência física do homem -incapaz, já aos 32 anos, de passar um dia sem beber cachaça ou batida de coco.
Para quem gosta de futebol, o maior prazer que o livro oferece é o de acompanhar os primeiros dez anos da carreira do jogador.
Antes disso, Ruy Castro oferece um saboroso painel da infância e da adolescência de Garrincha em Pau Grande, distrito de Magé (RJ), uma cidadezinha econômica e culturalmente influenciada pelos empresários ingleses da América Fabril, uma indústria têxtil instalada ali desde o início do século.
Nascido com as pernas tortas, em arco, no dia 28 de outubro de 1933, Manuel dos Santos é filho de um cafuzo (mestiço de negro com índio) e de uma mulata.
Desde os seus quatro anos, uma irmã nota que ele é pequeno como uma garrincha, um passarinho bobo, marrom, com o dorso listrado.
Destaca-se na infância e adolescência como excelente caçador de pássaros, sedutor de meninas (iniciou-se sexualmente com uma cabra, diga-se) e jogador de futebol.
Por causa desta sua terceira habilidade, em 1950, aos 17 anos, Garrincha começa a viajar de Pau Grande ao Rio (então Guanabara).
Só para registro do torcedor, Vasco, São Cristovão e Fluminense são os clubes que não enxergam talento algum em Garrincha e o devolvem a Pau Grande sem dar chances ao tímido ponteiro de pernas tortas de mostrar o seu talento.
Em 10 de setembro de 1953, dia do primeiro treino de Garrincha entre os jogadores profissionais do Botafogo, começa a história. E, junto com ela, a criação do mito e das lendas sobre o mito.
Ruy Castro dedica-se a partir desse ponto a mostrar o que há de verdadeiro e de folclore em algumas das melhores histórias sobre o jogador. São casos, escreve, que ajudaram a criar "o mito de um gênio infantil e quase debilóide, que não fazia justiça a Garrincha".
Veja algumas dessas lendas:
Primeiro treino - Sempre se disse que o treinador do Botafogo, Gentil Cardoso, após ver as pernas tortas de Garrincha, comentou: "Aqui dá de tudo, até aleijado".
Ruy Castro garante que é mentira, mas confirma que, na primeira bola que recebe no treino, aos 10 minutos, Garrincha dribla duas vezes Nilton Santos, então já um jogador consagrado. Na jogada seguinte, Garrincha passa a bola por baixo das pernas de Nilton Santos.
O rádio dinamarquês - Numa excursão à Europa, em 1955, Garrincha compra um rádio e o revende a um colega, por uma mixaria, após ser informado que seria besteira levá-lo ao Brasil porque não entenderia a língua que o aparelho estaria falando.
Ruy assegura que quem comprou o rádio foi o ponta-esquerda reserva do Botafogo, Hélio "Boca de Sandália", e que quem aplicou a piada foi Garrincha.
João - Para Garrincha, não faz diferença quem é escalado para marcá-lo. Ele chama todos os seus marcadores de "João".
Uma das lendas mais fortes sobre Garrincha, teria sido inventada, assim como outras, pelo jornalista Sandro Moreyra, amigo do jogador, para "realçar a sua simplicidade", escreve Ruy.
Reunião na Suécia - Inconformados com o fato de Garrincha ficar na reserva nos dois primeiros jogos do Brasil na Copa da Suécia, em 1958, Didi, Nilton Santos e Bellini exigem a escalação do jogador numa reunião com o técnico Feola e o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho.
Ruy Castro, em sua primorosa reconstituição da Copa de 58, jura que jamais houve essa reunião, embora os jogadores quisessem muito a escalação de Garrincha -o que acabou ocorrendo.
Mas nem todo o folclore em torno de Garrincha é suspeito. Ruy Castro dá como verdadeiras inúmeras histórias deliciosas que se conhece sobre o jogador. A saber:
Cadeira - Na tentativa de ensinar Garrincha a driblar menos e passar mais a bola, o técnico do Botafogo Zezé Moreira coloca uma cadeira na ponta da grande área e diz: "Garrincha, venha com a bola, passe pela cadeira e chute para dentro da área". Garrincha vem com a bola e a enfia entre as pernas da cadeira, "driblando-a".
Olé - O Botafogo joga no México, em 1958, contra o River Plate, base da seleção argentina. A cada drible de Garrincha no lateral Vairo, os torcedores gritam "olé!", como se estivessem numa tourada. Nasce aí o grito de "olé" nos estádios de futebol.
Expulsão - Num jogo contra o América do Rio, em 1962, vencido pelo Botafogo por 4 a 1, Garrincha foi ameaçado de expulsão pelo árbitro Amílcar Ferreira por driblar demais o lateral Ivan.
Ao final de 1962, Garrincha contabiliza, entre outras conquistas, dois títulos mundiais pela seleção brasileira e três títulos de campeão carioca pelo Botafogo.
Nesse ano marcante, em que começa um romance com a cantora Elza Soares, Garrincha já soma sete filhas com sua mulher, Nair, uma menina e um menino com Iraci, sua amante oficial, e um filho sueco, concebido numa noite de junho de 1959, durante uma viagem do Botafogo.
Além destes, Garrincha ainda teve uma oitava filha com Nair, um filho com Elza e uma filha com Vanderléa, sua última mulher, totalizando 13 herdeiros.
Entre 1963, quando o seu futebol começa a sofrer por causa de uma artrose no joelho, e 1983, quando morre em consequência do alcoolismo, Garrincha enfrenta uma série de episódios trágicos, que Ruy Castro quase sempre associa à compulsão pela bebida.
Duas tentativas de suicídio, três acidentes de automóvel, num dos quais a mãe de Elza Soares morreu, dezenas de internações por alcoolismo: o calvário de Garrincha, frisa seu biógrafo, se deve ao álcool e não, como se convencionou dizer, aos dirigentes esportivos que o enganaram, aos contratos em branco que assinou, aos amigos que o abandonaram.
Ruy Castro mostra de forma exaustiva que Garrincha não foi mais prejudicado em termos financeiros do que outros jogadores de sua geração.
Não foi o único a assinar contratos em branco (Nilton Santos, por exemplo, também fazia isso). E nunca deixou de contar com a ajuda de inúmeros amigos e de várias entidades oficiais, que o ampararam financeiramente até a morte.
A dificuldade, no caso da vida e da obra de Garrincha, ao final da leitura dessa odisséia, é saber o que impressiona mais, se a sua capacidade de driblar zagueiros ou se a sua incapacidade de parar de beber. "Não é o autor que escolhe o caminho que o personagem vai tomar", adverte Ruy Castro.

A OBRA
Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha, de Ruy Castro. 536 págs. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, CEP 01233-000, São Paulo, tel. 011/826-1822). À venda a partir do dia 26. R$ 31,00

LANÇAMENTO O livro será lançado, em São Paulo, no bar Nabuco (praça Vilaboim, 59), no dia 8 de novembro, a partir das 20h

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