São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 1995
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Antes que seja tarde

ANDRÉ LARA RESENDE

Simone de Beauvoir era a conferencista em Harvard. Entre cochichos e ranger de carteiras, nos instantes que antecederam as apresentações, ela pôde ouvir a observação espantada de uma aluna na primeira fila: mas a Simone de Beauvoir é uma velha!
Foi como uma revelação. Só então ela se deu conta de que também para ela o tempo tinha passado.
O episódio está em "La Vieillesse". Temos de nós mesmos sempre uma percepção se não de juventude, de idade indefinida, nunca de velhice. É preciso que o olhar dos outros nos revele o passar do tempo e, quando isso ocorre, é um choque.
Muitos se recusam a admitir. Antes que se abata sobre nós a velhice é algo que só diz respeito aos outros.
Foi meu pai quem me recomendou a leitura do livro. Que eu lesse antes que fosse tarde. Até hoje não sei se fez muita diferença.
Mas nas últimas semanas, em duas oportunidades, lembrei-me da história contada por Simone de Beauvoir.
Primeiro em Washington: em uma conferência sobre crise bancária, no painel que encerraria o dia estava escalado o ministro da Fazenda do Chile. Fomos contemporâneos em Boston, alunos de doutorado, em meados da década de 70.
Nunca mais o vira. Esperei ansioso o início do painel. Lá estava ele, não havia dúvida, mas como que maquiado para representar a cena "muitos anos depois". Procurei-o ao final do seminário. Vi em seu rosto surpreso a revelação recíproca do tempo que passou.
Depois aqui mesmo, em São Paulo, fui assistir a um show de um conjunto de rock-balada que fez grande sucesso no final dos anos 60. Uma das cantoras morreu, a segunda tomou outro rumo.
Os dois cantores, entretanto, arranjaram duas moças bonitinhas e resolveram faturar uns trocados pelo mundo afora na onda da nostalgia. Dois caquinhos, como observou minha filha.
Mas foi a platéia que me lembrou da história de Beauvoir. Meu Deus, como é difícil acreditar que aquela é a geração de Woodstock!
Ainda não me sinto velho, é preciso dizer antes que me entendam mal. Os tempos modernos esticaram a faixa de vida adulta e produtiva.
Começa-se mais cedo, terrivelmente mais cedo, e vai-se até mais tarde. Mas ando obcecado com a falta de tempo.
Assisti "Kids", mas estou atrasado em dois números do "The Economist". Cumpri a agenda em Nova York, apesar da chegada do papa, mas não consegui os papéis da universidade para minha filha. Era feriado judaico.
Estou relativamente em dia com os relatórios sobre os mercados internacionais, mas os livros não-lidos se acumulam em casa.
Li os dois recém-saídos sobre Warren Buffett, o investidor que disputa o título de homem mais rico do mundo com Bill Gates. Algumas observações críticas me pareceram que mereceriam um artigo. Não tive tempo.
Onde está o tempo para a amizade? A reflexão está limitada aos momentos trágicos. Uma morte incompreensível, uma vida ainda mais breve que todas as vidas, revela o absurdo das vidas corridas, das vidas perdidas.
Almodóvar, ao chegar, disse que uma vida só não basta. Desconfio que, dado a falta de alternativa, é melhor mudarmos esta. Ainda é tempo?

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