São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 1995
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Garrincha e Mozart

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - No momento em que a indústria editorial brasileira abre um caminho para depoimentos e biografias que comporão a memória nacional surgem alguns advogados oportunistas para atrapalhar ou mesmo chantagear editoras e autores. O caso mais recente é o livro sobre Garrincha que Ruy Castro escreveu e a Companhia das Letras está lançando esta semana.
Um advogado, vivendo desses expedientes, procura interessados potenciais e descola uma procuração. Pede uma liminar para impedir a distribuição do livro e fica aberto à "negociação". A prática já está se transformando em uma indústria.
No caso específico de Garrincha o seu drama tornou-se público com ele ainda vivo. Amigos, colegas, dirigentes esportivos, jornalistas, foram muitos os que o julgaram severamente, uma severidade que precipitou o seu fim. O livro do Ruy mostra a face oculta desse drama que todo o Brasil assistiu e lamentou. É um trabalho sério de pesquisa, na qual, aliás, a própria família do jogador colaborou conscientemente e de bom grado.
Se a moda pega, em breve não haverá mais pesquisa de nosso passado recente. Só para dar alguns exemplos: o livro de Samuel Wainer, ditado por ele mesmo, pode ser acusado de denegrir sua imagem. O mesmo acontece com o livro de Fernando Morais sobre Chateaubriand: os golpes e trapalhadas do personagem fazem dele um bandido bem-sucedido.
E as biografias de Oscar Wilde, Edgard Allan Poe (este com o problema do alcoolismo bem próximo ao de Garrincha), sem esquecer Mozart, cujo fim miserável só tornou maior a sua glória? Aliás, ao ler o livro sobre o Garrincha, em alguns momentos pensei em Mozart, roído por doenças venéreas, endividado, debochado, explorado no talento, também ele uma espécie de passarinho que se recusou a aceitar o grilhão das cortes. O arcebispo de Salzburgo jogou-o na neve com um famoso pontapé no traseiro. Aparentemente, Mozart não dava mais nada, fora sugado até o bagaço. Garrincha ainda teve um túmulo. Mozart, nem isso.
Que haja advogados que topam tudo por dinheiro, compreende-se. Espera-se dos juízes um ponto final a essa ganância forense.

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