São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 1995
Próximo Texto | Índice

Oliveira agita fantasmas do bem e do mal

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Manoel de Oliveira tem um destino estranho: na Europa, os filmes do cineasta português são recebidos com a reverência que se dedica aos grandes mestres. No Brasil, porém, a língua tem sido uma barreira.
"O Convento" é a chance de rompê-la. É quase todo falado em inglês (às vezes em francês, raramente em português) e puxado por dois atores internacionais: John Malkovich e Catherine Deneuve.
O cineasta, nascido em 1908, estará hoje, às 19h30, no auditório da Folha para um debate com o público. Amanhã, "O Convento" terá sua primeira apresentação no Grande Auditório do Masp, também às 19h30. Com legendas em português.
"O Convento" é uma variação pessoal da lenda germânica do Fausto (que vendeu sua alma ao diabo), em que Oliveira representa o conflito entre bem e mal na existência humana.
Ali, Oliveira conta a história de um pesquisador (Malkovich) que vai com sua mulher, Helena (Deneuve), a um convento, em busca de documentos. Ali, encontram Baltar (Luís Miguel Cintra), o diabólico guardião do local, que tenta seduzir a mulher.
É sobre seu trabalho mais recente, as preocupações que o inspiraram, a natureza da arte, que o cineasta falou por telefone à Folha, pouco antes de partir para o Brasil.

Folha - Qual a diferença entre dirigir um filme com astros famosos, como "O Convento", e sua produção habitual?
Manoel de Oliveira - Antes eu já havia feito um filme na França ("Le Soulier de Satin", de 85). Mas é uma experiência muito estimulante trabalhar com atores de grande renome, como Catherine Deneuve e Malkovich. Foi estimulante sobretudo porque são bons atores e tiveram uma participação muito interessante no filme.
Folha - Seus filmes refletem, com frequência, sobre a história e a sociedade portuguesas. Desta vez, a história se passa em um convento em Portugal, mas a mitologia é que está mais envolvida -desde o mito do Fausto até Helena de Tróia.
Oliveira - É um tema apaixonante, que diz respeito à nossa grande família, a humanidade. Pode acontecer aqui, no Brasil ou na China. Trata do poder e da luta entre o bem e o mal.
Folha - Me pareceu que o sr. coloca o mal como atributo do homem, e o bem como algo de Deus. Isso é correto?
Oliveira - O homem tem em si coisas boas e coisas más.
Certo dia, um amigo me convidou para um almoço. Eu fui à casa dele, e, ao chegar, a primeira coisa que vi foi um cão muito grande. Parei no meio do caminho. Meu amigo apareceu, falou com ele, e o cão sossegou.
Então ele me explicou: "Os cães são como os homens, têm um fundo bom e um fundo mal. Se puxarem para o mal, eles farão o mal. Se puxarem para o bem, farão o bem. Este foi educado para não fazer o mal".
Eu jamais esqueci isso. Essa verdade persiste no homem, que está em luta permanente com essas duas instâncias, para controlar o vício, a atração pelo mal. A vida é uma luta permanente.
Folha - Há uma imagem que aparece com frequência no filme e que não pude identificar. O que é, um Cristo?
Oliveira - Não, não. É o frei Agostinho da Cruz, que foi o fundador daquele convento. Ele tapou os ouvidos, a boca, os olhos.
Numa mão, ele segura uma vela, que representa a fé, e na outra, o chicote, para castigar suas tentações. Quer dizer que no mundo reside a tentação para o pecado.
É preciso tapar os ouvidos, os olhos e a boca para não ser tocado pelas tentações mundanas. Era uma figura que estava lá e eu aproveitei porque cabia muito bem no filme, que trata da necessidade de aperfeiçoamento espiritual.
Folha - Em seus filmes, o sr. não parece preocupado em reconstituir situações de maneira realista, em particular quando fala de outras épocas. Por quê?
Oliveira - Nós conhecemos as estruturas de cada época, mas a substância nós ignoramos. Podemos representar as tragédias gregas. Mas não sabemos como eram representadas no seu tempo, apenas temos indicações.
O cinema tem essa qualidade sobre o teatro, que é a de fixar. Podemos ver atores que já morreram. É um sortilégio do cinema, fixar fantasmas da vida. Não é a realidade que vemos, mas um fantasma da realidade.
Folha - Em "O Convento", o sr. trabalha remetendo o espectador a várias épocas. Como o sr. vê o tempo no cinema?
Oliveira - É muito importante, o tempo. O tempo é diferente da duração. Nós temos uma noção cronológica do tempo, que está no bater dos sinos, no relógio. Ao mesmo tempo existe a duração, que é psicológica. Um segundo pode parecer milênios, e milênios podem parecer um segundo.
No cinema, um plano breve não diz a mesma coisa que um plano longo. Os planos marcam uma duração dentro do tempo.
Folha - Como num sonho?
Oliveira - A realidade presente escapa a cada momento. O momento de agora já passou. Tudo o que fica é a memória. A vida é, de qualquer maneira, uma espécie de fantasma, que se revela pela memória, ou pelo cinema. Algo que não é, mas que foi.
Folha - A língua parece ser uma barreira para a compreensão dos seus filmes no Brasil.
Oliveira - Talvez isso aconteça porque no Brasil se articulam melhor as palavras. Todas as sílabas são bem pronunciadas. Em Portugal, comem um bocado. Isso torna mais difícil a compreensão.
Mas nós temos o Oceano Atlântico, que é uma distância e ao mesmo tempo é um traço de união. A língua também. Tem de servir para nos unir, não para separar.
Folha - Nos anos 70, numa entrevista, o sr. estava irritado com a influência das telenovelas brasileiras em Portugal.
Oliveira - Elas até hoje têm grande presença. Temos quatro canais de TV, e cada um exibe duas novelas brasileiras.
Folha - Elas atrapalham o cinema em Portugal?
Oliveira - Nada. O que atrapalha é a televisão. Com telenovela ou sem telenovela, ela de certa maneira arruinou o cinema.
Claro, a TV é mais confortável. Aperta-se um botão e depois a pessoa não se levanta.
O que há de interessante no cinema, como no teatro, é o sair da sua concha e juntar-se a outras pessoas para ver um espetáculo em conjunto, e depois trocar impressões... É uma coisa muito linda.
O cinema e o teatro são artes sociais. A televisão é, de certa maneira, solitária. Na televisão acrescentam palmas, risos, nos programas, para o espectador ter a impressão de que não está sozinho.
Folha - Seus filmes dão por vezes a impressão de tentar fazer uma ponte entre o cinema, o teatro, e também a literatura.
Oliveira - São formas, não é? Quer dizer, o teatro é uma síntese de todas as artes. O cinema continua e amplia isso, porque tem uma multiplicação de imagens, pode variar de movimento, de lugar.
E tem o condão de fixar. Enquanto o teatro é uma fórmula, digamos, material -porque o ator está lá, em carne e osso-, o cinema é imaterial. O que está lá são fantasmas. O fantasma do lugar, o fantasma dos atores. A máquina que projeta e a tela são materiais, mas a imagem é imaterial.
Folha - Quais os cineastas que mais o marcaram?
Oliveira - Quase todos. Eu vou ao cinema desde que tinha oito anos. Então, muita gente me influenciou. Mas há alguns que eu admiro em particular. Um que é peninsular, Buñuel. Outro, que é nórdico, é Dreyer, Carl Dreyer.
Mas, veja, esse tipo de pergunta pode dar idéia de que as coisas são um bocado complicadas. As coisas são simples como a vida.
Meus filmes são refletidos, é claro. Têm alguns momentos complicados. Mas as pessoas estão lá para ver. E os filmes dão uma certa parte. O resto é o próprio espectador que acrescenta. Porque é o espectador que vai acabar o filme.

Próximo Texto: Obra atesta resistência
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.