São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 1995
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Sobre privatizações e caixa

MILTON TEMER

"O que está à venda é o simples controle acionário, 51% das ações ordinárias com direito a voto. E o que a União receberá por esse patrimônio é algo em torno de R$ 3,2 bilhões. O que representa isso diante da dívida mobiliária interna? Nada."
Se perguntarmos ao leitor assíduo desta tribuna democrática de debates quem fez a afirmação com que abro essas linhas, possivelmente ele se lembrará do artigo do líder do PSDB na Câmara, deputado José Anibal, recentemente publicado nesta página sob o título "Privatização e Taxa de Juros", ou da entrevista dada semana passada pelo ministro José Serra.
Um artigo consistente, fundamentado em cifras e números oficiais para enfrentar aqueles que, no seu próprio campo político, buscam acelerar a venda das estatais com vistas a obter receitas com que o governo abateria o estoque da dívida mobiliária interna.
O leitor se engana. A frase entre aspas é parte das notas taquigráficas da intervenção feita pelo escriba que ora vos invade na defesa do voto do PT contrário ao relatório que, por orientação do PFL, radicalizou a proposta do governo na quebra do monopólio das telecomunicações.
Transcrevo aqui, portanto, parte do que disse na tribuna da Câmara, em 24 de maio último, para me contrapor aos argumentos defendidos exatamente pelo ilustre deputado José Anibal e demais parlamentares de sua bancada no duro debate que travamos.
Não deixa de ser irônico que, passados apenas cinco meses, o líder do partido do governo na Câmara reconheça, nesta página 1-3 da Folha, que a soma resultante da venda das estatais, ainda que fossem a leilão de uma única vez todas as subsidiárias (vendáveis) da Telebrás, a Eletronorte, a Eletrosul, a Chesf e a Companhia Vale do Rio Doce, não preencheria sequer um quarto da dívida mobiliária interna do país.
Mas naqueles dias, durante o debate na Comissão Especial da Câmara em torno da questão, o ministro José Serra afirmava que sim: a ordem era privatizar para fazer caixa.
A julgar pelas novas posições expostas pelo líder do PSDB, os membros de seu partido, naquele momento, impuseram ao país uma política de privatizações cujas consequências e formato futuro não vislumbravam. Como se, irresponsavelmente, acreditassem sem conferir na falácia que se impunha ao senso comum sobre a "tendência mundial à privatização", depois "da inevitável quebra dos monopólios estatais".
Ilustrando: na Argentina foi privatizada a empresa estatal de telecomunicações. Quem comprou? Na região norte um consórcio entre a estatal francesa e a estatal italiana; na região sul a estatal espanhola. E o que ocorreu com as telecomunicações na Argentina? Quem nos fornece a resposta é o nosso Ministério das Comunicações. Sem levar em conta o aumento das tarifas que ocorreu logo após a eleição de Carlos Menen, a chamada local na Argentina custa pelo menos cinco vezes mais do que no Brasil.
O preço das chamadas locais no Brasil só perde hoje para o Canadá, que é zerado, porque lá o preço da assinatura já é bastante alto. Levanta-se então: há a compensação da assinatura. Também não. No Brasil a assinatura é a mais barata do mundo. Enquanto cobramos US$ 11, na Argentina privatizada cobra-se US$ 14. Vamos, ainda há uma informação que interessa a toda a sociedade num processo que aponta como objetivo transferir um serviço público para o setor privado: as tarifas.
Dados do Ministério das Comunicações demonstram que, tanto no que diz respeito às tarifas como instalação e assinatura, nossa vantagem é de pelo menos 5 a 1 sobre a Argentina privatizada.
O que se trata substancialmente de enfrentar neste debate é: a que projeto de nação corresponde uma política de privatização do patrimônio público que, agora todos admitem, até mesmo o líder do partido do governo, não serve nem para fazer caixa?
Não há duas respostas, principalmente depois do projeto de reforma administrativa e do Estado, enviado pelo ministro Bresser. Serve ao modelo de "modernização conservadora" que marca o advento da Terceira Revolução Industrial, num contexto de refluxo dos movimentos sociais transformadores em todo o mundo -a "modernização" que, pela hegemonia das forças do capital sobre as do trabalho, impõe uma nova ordem mundial, calcada na eficácia da manutenção das taxas de lucro das grandes transnacionais ao preço do desemprego estrutural e da legitimação das desigualdades.
Neste sentido a reação, mesmo tardia, do líder do PSDB conta com nossa solidariedade. Só esperamos que depois de construir no seu artigo uma argumentação tão consistente, o líder do partido do governo na Câmara Federal não se limite à conclusão de que o problema das privatizações reside no ritmo.
Nem "os críticos que confundem a privatização de empresas que valem bilhões com a venda de uma padaria" e imaginam que "essas empresas podem ser vendidas em 24 horas"; nem os outros críticos que "...lutam em maior ou menor grau pela preservação do 'status quo' e não querem privatizar nada".
Para estabelecer o divórcio ou consolidar o casamento com o PFL, o PSDB -ainda que não seja muito do seu gosto e de sua tradição- deve escolher com clareza qual proposta de Estado a social-democracia brasileira oferece.
Ou bem confere o mínimo de correspondência prática ao antigo discurso social-democrata, ou bem assume a tarefa de emprestar o nome (e a história) para gerir um projeto de Estado mínimo que aprofunda a exclusão social, voltado para gerir os interesses dos consumidores porque incapaz de governar para os cidadãos.

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