São Paulo, sexta-feira, 3 de novembro de 1995
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'O Judeu' revela jogo político da igreja

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não é uma estréia desta semana. O filme "O Judeu", de Jom Tob Azulay, será exibido no Festival de Brasília e deve ser lançado comercialmente só no ano que vem. Mas vale desde já chamar a atenção para ele.
Conta a história do dramaturgo brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu (1704-1736), morto em Lisboa, na fogueira, depois de condenado pela Inquisição. O jornalista Alberto Dines publicou, pela Companhia das Letras, "Os Vínculos do Fogo", primeiro e extenso volume de uma biografia desse teatrólogo.
Não tenho muita coragem de ler biografias. Não porque aborreçam. Ao contrário, são fascinantes demais. Peguei as primeiras páginas de "Mauá", de Jorge Caldeira, ou de "Estrela Solitária", sobre Garrincha, de Ruy Castro. É praticamente impossível deixar de ler o livro todo. E, não sei se por puritanismo, paro de ler.
É como se a qualidade da narrativa, e o acúmulo de fatos significativos, trouxesse para mim o risco de uma experiência de leitura excessivamente próxima do real, irredutível a teorizações, a conceitos abstratos. Idéias se aplicam, se discutem, se desdobram. Já o relato de uma vida... bem, de certa forma esgota-se em si mesmo, suscita espanto, admiração, desalento; permite conclusões genéricas sobre a época em que determinada pessoa viveu, mas sobretudo está ali, exposto, prescindindo de qualquer comentário. Que interessante! Então era assim?
O interesse pelas biografias nasce, creio, da crise do marxismo. Para quem entendia a História como um vasto processo impessoal, quase que imune às influências do acaso, partida entre forças econômicas e espirituais mais ou menos livre de contingências e de líderes, a tendência sempre foi a de esquecer um pouco os fatos, as biografias, os pormenores.
Toda uma geração, educada na historiografia marxista, sabe mais ou menos o que era latifúndio, feudalismo, capitalismo, protestantismo, e ignora os eventos políticos, as modas, os crimes, os nomes, as guerras, os amores, os dramas do passado.
Daí o sucesso da "nova história, da escola francesa, interessada nas revoluções do cotidiano, como que numa antropologia do passado -"História da Vida Cotidiana" é um best seller- e o interesse pelas biografias, quase sempre irresistíveis.
Assistindo a "O Judeu", percebi que imenso e fascinante livro Alberto Dines deverá ter escrito sobre o mesmo personagem. Antônio José da Silva era cristão-novo, e fora mandado do Brasil para Portugal quando criança. Sua família, como tantas, continuava a manter a religião judaica. A Inquisição católica perseguia os falsos convertidos.
Isso, já em pleno século 18, quando os progressos da razão e da ciência iam minando os dogmas e o poder da igreja, mesmo no atrasado Portugal.
O filme mostra de maneira fascinante tudo o que estava em jogo. O rei dom João 5º (vivido pelo excelente ator português Mario Viegas) não pode prescindir do apoio da igreja; ao mesmo tempo, tem um primeiro-ministro modernizador e esclarecido, Alexandre de Gusmão.
Alexandre de Gusmão quer construir um aqueduto para melhorar as condições sanitárias de Lisboa. O aqueduto terá de passar por terras da igreja. Os padres são contra. Mas o inquisidor-mor, cardeal Nuno (vivido surpreendentemente por José Lewgoy) cede à coroa. Em troca, ou melhor, para aquietar seus radicais, dá novas forças à Inquisição. Forja-se então um processo contra Antônio José da Silva, que desfrutava de favores da corte e contava com a simpatia do primeiro-ministro progressista.
Em última análise, e na minha interpretação, uma pessoa levada à fogueira devido à construção de um aqueduto... Não é a menor ironia desse filme. O padre encarregado do processo, zeloso da fé, sério combatente das heresias, passa por dramas de consciência. Percebe que nada havia contra o Judeu. Seu rigor inquisitorial significava, bem ou mal, uma certa pureza de princípios. Mas o processo é irregular, foge ao estabelecido nos manuais da Inquisição. Vai pedir conselhos a José Lewgoy. Pessoa nada indicada para dar conselhos.
Uma das maiores qualidades de "O Judeu" está na sutileza e na inteligência dos diálogos. Os interesses políticos se deixam apenas subentender, num ambiente de perigos e perseguições. Ninguém diz francamente o que quer. As solenidades do trono e as unções do altar, o segredo da fé judaica e os remorsos do fanatismo, a falsa confissão e o falso inquérito se alternam, num jogo em que ninguém é burro, mas em que as regras valem pouco.
O contraste não poderia ser maior com um filme brasileiro recente, "Carlota Joaquina", que mostra, num registro pesadamente satírico, a estupidez e o primitivismo da corte de D. João 6º. Atrasados, certamente os reis portugueses foram; mas burros? Em "O Judeu", as circunstâncias políticas, um jogo altíssimo de interesses, vêm à tona, e o maior espetáculo é ver como ele é jogado.
Fica-se também pensando na mistura entre fé sincera, cinismo político e puro interesse econômico atrás dessas perseguições religiosas. Confiscar as posses de um herege devia ser excelente negócio. Bom negócio, também, corromper-se para soltar um herege da prisão. A riqueza e o prestígio do reino, por sua vez, dependiam de uma camada empreendedora e esclarecida, adversária dos padres.
Não sei, aliás, se o que falta ao desenvolvimento capitalista de um país é "fé protestante", "calvinismo", como tantas interpretações espúrias do pensamento de Max Weber costumam afirmar por aqui. O assunto seria longo demais para desenvolver neste artigo. Talvez a tolerância religiosa, a separação entre igreja e Estado, sejam por si fatores de desenvolvimento econômico, sem necessidade de protestantismo. A Itália católica é hoje um sólido país capitalista.
Pelo menos atualmente, não é o "catolicismo" o que entrava o desenvolvimento brasileiro. A Igreja Católica quer reforma agrária e distribuição de renda no Brasil. Duas coisas que no fundo ajudariam ao capitalismo. Mas certa sociologia cínico-weberiana diz que os católicos atrapalham o capitalismo porque têm ódio ao lucro. Só que no Brasil nenhum católico teme ganhar dinheiro e explorar o próximo. Se fosse por gosto de lucro, já estaríamos no Primeiro Mundo há muito tempo. Acho que nada disso tem a ver com Max Weber.
Mas desviei-me do assunto. Outro ponto que certamente entra em discussão com "O Judeu" é o da intolerância religiosa. Uma personagem, judia, ataca uma imagem de Nossa Senhora, dizendo não acreditar em ídolos de barro. Como o pastor Von Helde. Incrível que discussões tão tolas sobrevivam por séculos. "O Judeu" esclarece um pouco sobre o que está por trás de tudo isso.
Mas não é nenhuma aula de história ou de sociologia das religiões, como este comentário talvez esteja a sugerir. É um filme forte, inteligente, extremamente bem realizado: um prazer para o espírito, e um drama, sem qualquer panfleto, contra a perseguição religiosa em geral e contra o anti-semitismo em particular, esse anti-semitismo que é, se posso dizer assim, o mais odioso de todos os preconceitos, uma vez que se funda mais na inveja, no complexo de inferioridade, do que no desprezo.
Desprezar alguém por seu credo ou raça é detestável, é criminoso. Mas perseguir sem desprezo, ou melhor, com o desprezo a recobrir uma clara inveja, é ir um grau além no próprio preconceito. Mas vejo que entrei em outro assunto. A culpa é de "O Judeu".

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