São Paulo, sexta-feira, 3 de novembro de 1995
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Isso não é justiça

MARIO SIMAS

Causa perplexidade ao homem de bom senso, dado à leitura da lei processual penal e familiarizado no trato de questões jurídicas de natureza criminal, o fato de cinco lavradores, chamados antes bóias-frias e conhecidos agora como sem-terra, terem tido a prisão preventiva decretada pelo juiz de direito de Pirapozinho, Estado de São Paulo, sob a alegação de que a medida é necessária em nome da ordem pública, para que a instrução de futuro processo não venha a ser prejudicada e para assegurar a execução de pena privativa de liberdade.
A prisão preventiva é medida por demais odiosa e, nos países mais adiantados, vem sendo abolida porque implica encarcerar uma pessoa sem que tenha sido julgada em regular processo por juiz competente e imparcial. Evidentemente a ordem pública está a exigir, isso sim, diálogo, composição, atos de razoável inteligência, para que a lei maior, de que guardião por excelência o Poder Judiciário, seja cumprida ou, em outras palavras, para que a reforma agrária seja concretamente realizada.
Por outro lado não há que se falar em instrução criminal, e muito menos em futura pena privativa de liberdade, pois os trabalhadores da terra, sem os quais não seríamos alimentados, o que pretendem é legal, legítimo e acima de tudo cristão. Não praticaram crime algum.
A primeira condição a permitir falar-se em prisão preventiva é a prática de infração penal. Não nos parece o caso, mesmo porque a terra que vem sendo ocupada não é propriedade dos que se dizem vítimas.
Se não há crime, não poderá haver processo penal e, se não houver processo penal, não há que se falar em instrução ou em condenação.
Na Idade Média, conforme censurado pelos doutores da igreja, a tortura antecedia a pena corporal, consubstanciada na própria tortura. E o que se pretende hoje, em razão de um decreto de prisão preventiva, providência censurada pelo insigne Carnelutti, é prender para saber se mais tarde o autor do fato deverá ser preso. Nos dias que correm não encontra eco, nem mesmo a menor ressonância no bom Direito, prender-se preventivamente homens que querem trabalhar e tornar produtiva a terra.
Estamos no limiar do segundo milênio. Não nos é dado o direito de pensar e agir como se estivéssemos vivendo a medieva idade.
Os governantes manifestam querer levar avante a reforma agrária, mas tal mister se lhes exige em razão de imposição legal.
É inadmissível que Diolinda, mulher do campo, companheira do líder Rainha, tenha sido presa, algemada e exposta à televisão e agora se encontre encarcerada na penitenciária feminina sem que tenha praticado qualquer delito. E mesmo que o tivesse praticado, apenas para argumentar, não é assim que se cumpre a lei.
Merece especial realce, porque inconcebível e por demais censurável, que o filhinho do casal Rainha e Diolinda, criança de dois anos de idade, teria de ficar só em um hospital para ser submetido a uma intervenção cirúrgica porque o pai se protege do cumprimento de um ilegal quanto temerário mandado de prisão e a mãe se acha injustamente encarcerada.
Não será a partir de decisões atabalhoadas, inoportunas e, quiçá, fruto da inexperiência, que estaremos vivendo o bom Direito e praticando justiça.

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