São Paulo, sábado, 4 de novembro de 1995
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Seleção é uma das melhores dos últimos anos

'O Ciclista', que recebeu o Leão de Ouro em Veneza em 95

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

É indiscutível, a seleção da 19ª mostra de cinema foi uma das melhores dos últimos anos. Mais uma vez ficou comprovado que não é entre os principais premiados nos festivais de grande porte que estão os biscoitos mais finos. Tanto "A Isca" de Bertrand Tavernier (Urso de Ouro em Berlim 95) quanto "O Ciclista" de Tran Anh Hung (Leão de Ouro em Veneza 95) se revelaram aquém das expectativas.
"A Isca" é mais um filme francês flertando com o cinema americano. "O Ciclista" parece ter sido concebido para ganhar festival, tamanha a desfaçatez com que mistura todos os clichês da chantagem emocional e política.
Melhor ressaltar os méritos de três filmes que passaram à margem do oba-oba, e cujos realizadores parecem realmente preocupados em construir uma obra relevante.
Em "Amore Molesto" o italiano Mario Martone imanta a tela com o rigor quase cirúrgico com que disseca as mazelas mais profundas da alma de uma desenhista napolitana.
Não é de estranhar que o filme tenha passado em brancas nuvens em Cannes 95. Martone não faz concessão nenhuma ao mercado internacional. Explorando o potencial extraordinário da atriz Anna Bonaluto (a Fedra de "Pequenos Horrores", de Tonino di Bernardi), Martone faz um cinema clássico no sentido mais nobre do termo, com uma dicção própria, napolitana, como o teatro do qual é o expoente, e, por isso universal.
"Amore Molesto" é uma obra densa, hipnótica e mesmo distante da radicalidade de Tonino di Bernardi (que opta pelos monólogos eruditos em contraste com as imagens toscas); recupera também para o cinema italiano a força trágica dos mestres da península.
Se Martone brilha pelos magníficos momentos de pura atmosfera narrativa, o que dizer então de "Posto Avançado" do húngaro Peter Gothar, em cujos 85 minutos de duração o que menos importa é a história contada?
Aliás, o enredo, aparentemente tão extemporâneo, é apenas um artifício para um passeio ao inferno. "Posto Avançado" é o cinema em seu estado mais puro, criação impressionante de uma geografia própria e uma viagem atordoante ao fim do mundo.
Uma funcionária pública de um país do Leste Europeu, no final dos anos oitenta, é aparentemente promovida à chefe de seção de um posto avançado da empresa. Daí o espectador é convidado a um mergulho no abismo junto com a personagem. Todos os recursos da linguagem cinematográfica são magistralmente usados para a obtenção de atmosferas: da música aos ruídos, da luz às sombras, do sol à chuva, da neve à lama etc. Outra surpresa foi "Desiertos Mares", do mexicano José Luis Garcia Agraz. A misógina trajetória do cineasta que é abandonado pela mulher e que se envolve com uma estagiária mais jovem para resolver sua crise criativa nada tem haver com "Oito e Meio" de Fellini.
Agraz não se esconde atrás da metáfora. Quando o herói de "Desiertos Mares" sonha com o próprio pai travestido do seu personagem mítico, é a ironia que destila amargura. O cineasta, ao tentar compreender as razões que levaram sua mãe a trair o pai, busca conhecer as suas próprias fraquezas e limitações.
Filme corajoso, por vezes obsessivamente masculino, "Desiertos Mares" tem um dos mais belos desfechos vistos ultimamente. O explícito encontro do cineasta consigo mesmo, realizado por autor menos talentoso, poderia facilmente descambar para a pieguice barata. Mas o que se vê na tela é poesia despudorada, quase infame.

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