São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Cartas de uma subversiva

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Miúda e frágil ela sempre foi. De uns cinco anos para cá, ainda mais frágil ficou por causa de uma fratura na perna, que a aprisionou a uma cadeira de rodas. Nem isso fez com que ela deixasse de ser o que também sempre foi: uma mulher corajosa, irrequieta e dinâmica. O peso dos 90 anos não alterou sua disposição de missionária, e muito menos sua lucidez. Ela ainda preside as reuniões semanais do seu grupo de estudos junguianos, supervisiona à distância o Museu de Imagens do Inconsciente e, o que é mais importante, ainda escreve livros. O último acaba de chegar às livrarias.
Estamos falando de Nise da Silveira (ou dra. Nise, como todos a chamam), patrimônio de nossa história, da história da psiquiatria e até mesmo da história das artes plásticas. Aos 31 anos, ela foi presa como subversiva, ficando na mesma cela de Olga Benário (maiores detalhes em "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos). Subversiva, mesmo, ela provou ser dez anos mais tarde, ao criar a seção de terapêutica ocupacional do Centro Psiquiátrico D. Pedro 2º, no Rio, revolucionário reduto em que os métodos com os quais os esquizofrênicos eram tradicionalmente tratados foram desmoralizados para sempre com a ajuda de alguns cavaletes e vários tubos de tinta e pincéis.
Em vez de choque elétrico, pintura. Em vez de gritos, imagens do inconsciente, catárticas e reveladoras, quando não altamente criativas. Para elas criou-se um museu especial, em 1952, de renome internacional. Sobre elas o cineasta Leon Hirszman realizou um documentário, em meados da década passada.
Também célebre por ter difundido entre nós as idéias de Jung, a alagoana dra. Nise não aborda em seu novo livro o pensamento do mestre suíço. Tampouco fala, diretamente, de psicanálise, ergoterapia e vôos do imaginário, temas de escritos passados ("Imagens do Inconsciente", Alhambra, 1979; e "O Mundo das Imagens", Ática, 1992), mas de um filósofo holandês.
De, não, para. Pois são cartas o que dra. Nise escreveu, dirigidas ao mais permanente dos pensadores holandeses, Baruch Spinoza (1632-1677). "Uma alma irmã", diz ela, acariciando Carlinhos, seu último gato de estimação.
Uma das maiores e mais notórias virtudes de dra. Nise é seu amor pelos animais, em particular pelos felinos. A um deles (Mestre Onça) dedicou um livro e a outros delegou a missão de analisar o caráter das pessoas que a cercam. "Os gatos são verdadeiros sábios e sabem como ninguém distinguir quem tem boa ou má índole." Spinoza vivia com dois gatos. Mas não foi exatamente por isso que ela escreveu "Cartas a Spinoza" (Francisco Alves, 108 págs., R$ 13,00), conforme veremos na entrevista que se segue.

Folha - Como surgiu a idéia de escrever as cartas?
Nise da Silveira - Aos poucos. Também foi aos poucos que as escrevi, para uma editora que as estropiou, me obrigando a suspender sua publicação. Meu amigo Pedro Pellegrino foi quem interessou a Francisco Alves. Eu nem pensava mais em editá-las. Até porque, no fundo, fiz tudo aquilo mais de brincadeira.
Folha - De quando data o seu interesse pela filosofia e, mais especificamente, a sua paixão por Spinoza?
Nise - Desde garota. Mas não comecei por Spinoza. Meu pai, que era professor de matemática, tinha uma biblioteca enorme, em Maceió, na qual eu lia muito literatura. Adorava, como até hoje adoro, Machado de Assis. Ele foi o meu primeiro mestre de psicologia. Havia muitos livros de filosofia na biblioteca e acabei lendo até Auguste Comte. Spinoza veio depois.
Folha - E como se deu esse encontro?
Nise - Por meio da "Ética". Procurei em seguida o "Tratado de Reforma do Entendimento", mas não o encontrei em Maceió. Só fui achá-lo no Rio. Nunca fiz um estudo sistemático de Spinoza, mas nenhum outro filósofo exerceu sobre mim uma atração intelectual e afetiva tão forte.
Folha - Numa de suas cartas, a sra. fala do impacto que lhe causou a leitura da "Ética" num momento de "muito sofrimento e contradições". Que tipo de contradições a sra. sofria?
Nise - Eu era muito insegura por causa do meu fracasso como música. Não ter me tornado pianista, como minha mãe, foi um grande golpe para mim. Meus pais adoravam música, eu tinha os dedos perfeitos para o teclado -longos o bastante para uma nona-, mas logo descobri que tinha ouvidos de chumbo. Isso me arrasou.
Folha - E como foi que Spinoza a ajudou?
Nise - Me mostrando a existência de outros valores, perto dos quais os problemas que me inquietavam perderam importância. Spinoza me deu algo que eu não sabia que existia naquela ocasião: a unidade das coisas. Tudo é uno. Quando descobri que matéria e energia são uma coisa só, uma se transformando na outra, virei outra pessoa.
Folha - Além de trabalhar com o cérebro, Spinoza mexia com lentes, era um misto de pensador, operário e cientista. Ou seja, um intelectual orgânico. A sra. também o admira por esse aspecto, não?
Nise - Claro. E é justamente por esse aspecto que podemos vislumbrar sua influência sobre o meu trabalho de terapia ocupacional, cuja idéia central é a de que o imaginário passa pelas mãos.
Folha - A medicina foi uma substituição perfeita para o fracasso na música?
Nise - Acabou sendo. Não me achava, a princípio, com vocação para a medicina. Aos poucos, fui tomando gosto. Me formei na Bahia, em 1926. Mas minhas primeiras experiências decisivas vieram mais tarde, depois que descobri não ter a menor vocação para tratar doentes mentais à base de eletrochoques, insulina e lobotomia, práticas que associei imediatamente à tortura policial. Deixei isso bem claro com o diretor do Hospital D. Pedro 2º, que, mesmo exaltado, confiou a mim o Serviço de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico. Foi ali que comecei a pôr em prática minhas idéias sobre a atividade artística como processo terapêutico.
Folha - Que desagradou a muita gente.
Nise - Diziam que eu tinha vocação para gafieira. Mas, depois que expusemos nossos trabalhos em Paris, a primeira vez em 1950 e a segunda em 1957, ganhamos a necessária respeitabilidade e influenciamos, inclusive, o surgimento de instituições parecidas em Gênova e Nova York.
Folha - Também foi em 1957 que a sra. conheceu Jung. Que impressão ele lhe causou?
Nise - Era um homem muito alto e grande, mas simples. Fui visitá-lo em sua casa de campo. Sua primeira lição foi me mandar estudar mitologia. "O inconsciente fala a linguagem da mitologia, disse ele. Espero ter aprendido direito a lição.

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