São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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A estrela solitária

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - É inevitável o comentário sobre o livro de Ruy Castro sobre Garrincha, mistura de glória e tragédia que pelo menos duas gerações de brasileiros ainda conservam na memória e, até certo ponto, no remorso.
O momento editorial está sendo pródigo na tarefa de lambermos nossas próprias feridas. As biografias estouram no mercado, umas pelas outras ajudam a compor o nosso tempo e o nosso "pathos".
Garrincha ressurge no bem elaborado trabalho de Ruy Castro. Ressurge com o seu outro lado -que em vida dele foi ofuscado pelo brilho e pela alegria com que marcou nossos estádios e nosso imaginário. Sabia-se que ele vivia seus dramas, sua vida foi até escandalosa para o padrão nacional -mas tudo bem, ele ia levando, era o Mané de Pau Grande, o imarcável, o passarinho, o Mozart do futebol.
Ruy desceu fundo em seu drama -mas veio de longe, foi buscá-lo geneticamente entre os índios que se recusavam à aculturação- e Garrincha viveu e morreu recusando-se à aculturação. O alcoolismo que precipitou o fim de sua carreira, sua decadência e morte, recebeu de Ruy um estudo minucioso, implacável. Não conheço, em nossa literatura, nada parecido. Até então, o melhor relato sobre o alcoolismo, em linguagem literária, era o de Francisco de Assis Barbosa sobre Lima Barreto.
O caso de Garrincha é mais complexo e doloroso. Afinal, Lima Barreto bebia porque não lhe reconheciam o talento, porque era negro e lhe negavam a obra e o pão. Garrincha teve o reconhecimento internacional, ganhou dinheiro, amou e foi amado, não chegou a ser um atleta perfeito nos estádios, mas foi um atleta na cama. A atração pelo abismo em que caiu era maior do que a sua glória, do que sua alegria vital.
O livro de Ruy recria a solitária estrela que a noite tragou. É também o perfil de uma chaga social que a sociedade até hoje se recusa a admitir como mais letal do que a Aids. Ficará como um documento do destino paradoxal do brasileiro comum, capaz de todas as vitórias em busca da derrota final.

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