São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Clima e costumes na novela

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pessoas que não trabalham de terno e gravata imaginam ser um suplício usá-los no dia-a-dia. Na verdade, não há incômodo algum, se asseguradas certas condições de temperatura e pressão: o ar condicionado funcionar direito e o colarinho não apertar a jugular.
Há, é claro, um período inicial de adaptação, no qual até o indivíduo mais despachado perde a naturalidade. O terno parece exigir sobriedade e discrição em tempo integral, dando uma sensação de "engessamento" que limita movimentos e predispõe apenas a conversas sérias.
Bastam, porém, dois ou três dias para voltar a descontração, e eis o executivo novato, a caráter, chutando lata na rua e descrevendo com gestos largos a vasectomia "do-in" que o volante vascaíno tentou fazer no jogador do Cruzeiro.
Em alguns anos, família constituída, o engravatado terá aprendido a executar o ritual de reentrada na atmosfera caseira.
Consiste em esvaziar os bolsos, despir o paletó, afrouxar o nó da gravata e dar um revigorante mergulho no sofá, provocando reclamações da mulher, que detesta bagunça na sala.
O executivo da vida real não usa terno em casa. Essa é a segunda diferença básica entre ele e a imitação que se vê nas novelas. A primeira, é que o executivo real passa o dia trabalhando, enquanto o fictício trata basicamente de questões familiares e afetivas.
Em uma cena exemplar de "A Próxima Vítima" a recém-chegada Romana resolve dar uma "incerta" na contabilidade do frigorífico, exigindo que Filomena e Eliseo a acompanhem.
É manhã de sábado e o escritório deve estar às moscas. Espera-se que usem roupa casual, mas estão alinhadíssimos, Eliseo de terno e madames de vestido, colar e salto alto.
À saída, encontram Adalberto, que, informado do motivo da excursão, observa: "Mas num sábado?". Contudo, não estranha as roupas que usam, pois, ele mesmo, que nem sequer sairá de casa, está de calça e camisa sociais, gravata e pulôver de lã.
Não seria aquela uma manhã do inverno paulistano, ensolarada, mas fria, a justificar roupas tão pesadas?
Talvez, mas, em seguida à saída do trio, Isabela e Bruno vão nadar na piscina. Na novela, cada personagem tem seu clima particular.
Ana entra no quarto de Giulio, que dorme só de bermuda, refestelado na cama. Como todas as mães, ela estima a temperatura ambiente em cerca de 20 graus abaixo da efetiva, e cobre o bambino com um espesso edredom dobrado ao meio.
Sentada à beira da cama, Ana diz ao dorminhoco, como se este a ouvisse atentamente, que não pretende que ele esqueça Marcelo, seu pai de criação, mas apenas que aceite Juca, o pai biológico.
E Ana deixa o quarto, talvez esperando que, à medida que o edredom faça subir a temperatura, o sonho de Giulio mude do cálido corpo de Teca para o fogo do inferno, onde ouvirá a voz suplicante: "Aceite Juca, meu filho..."

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