São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Por trás da cena americana

LUIZ RENATO MARTINS

Edward Hopper and the American Imagination
Catálogo da mostra do mesmo nome (22/6-15/10, 1995) Deborah Lyons (org.) Whitney Museum of American Art/W.W. Norton & Company, 256 págs. US$ 27,06

O catálogo "Edward Hopper and the American Imagination" apresenta uma visão, como o título já anuncia, iconológica e nacionalista da obra de Hopper (1882-1967). O catálogo (com 59 reproduções) também quer instituir uma linhagem posterior de obras deste tipo. Para isso, o ensaio de G. Levin tece sem maior exame uma fieira de parentescos iconográficos de obras recentes com as de Hopper. E, pondo a pop art como sucessora direta de Hopper, reenvia o expressionismo abstrato a um interregno sem legitimação nacional.
Treze textos literários recentes e de cor local, unidos pelas idéias de coloquialidade imediata e de situações "hopperescas", compõem o restante do volume. O viés iconológico, com alguma fantasia, também dá o tom aqui. Numa brochura grátis, a curadora-associada B. Venn radica, no mesmo sentido, o estilo de Hopper no cinema e em outros meios de massa, asseverando que ele "proveu a lente ('intemporal') com a qual vemos a América".
Quer-se, pois, nacionalizar a obra de Hopper e o esforço se evidencia em oposição ao catálogo dos EUA na Bienal de São Paulo de 67; duas mostras, uma de Hopper e outra de expoentes da pop compuseram o notável acervo dos EUA na ocasião. Os ensaios de L. Goodrich e W. Seitz destacavam então as três longas estadias de Hopper na França entre 1906 e 1910, bem como a herança impressionista e o universalismo da sua obra. Goodrich, amigo e estudioso da obra, nada dizia sobre laços com a pop; Seitz entre os pop presentes comparava só o trabalho de George Segal ao de Hopper e concluía: "as semelhanças são acidentais". Para Seitz, Hopper devia "ser visto contra o amplo panorama da arte ocidental".
Hopper, ao revés de Man Ray (1890-1976) e Calder (1898-1976), da geração seguinte e filiados à vanguarda européia, voltou ao país. O que não o torna menos universalista e moderno, mas até mais autônomo politicamente pelo desafio fundador de sua ação (1). A modernidade do seu trabalho só romperia a custo o padrão acadêmico ou normativo da pintura idealizada da cena nativa. Neste rumo, enfrentou com armas próprias as escolas dominantes nos anos 30 (o regionalismo do grupo da "American Scene" e o realismo social), sem ceder e sem se valer dos marcos do debate europeu daqueles anos.
Mas como se elaborou, de fato, no plano estético, esta autonomia? Os trabalhos, mais que a história do autor, mostram a ruptura polemizante. Contra o pathos nativista e os cânones do naturalismo, Hopper adota a lição impressionista. O campo visual das cenas, recortadas de um horizonte presumivelmente maior pertinente à consciência, indica, tal como em Monet ou Degas e Lautrec, a especificidade do olhar e seu desígnio de emancipação. No uso das cores, a recusa dos efeitos de volume do "chiaroscuro" sustenta a afirmação da pintura e a bidimensionalidade da tela como em Manet e nos impressionistas.
Noutros itens, o corte autônomo e moderno é ainda mais incisivo. Hopper logo vem a negar o aspecto naturalista do impressionismo, ligado ao cientificismo e ao positivismo. Opera a partir da atividade da imaginação e da memória, divergindo da preferência dos impressionistas pelos dados de observação. Sua arte sóbria assenta em atos sintéticos da consciência. Prefere "constructos" humanos aos motivos pitorescos e naturais, herdados do século 19. Paredes, portas, janelas e vitrinas, denotando a orientação reflexiva, constituem temas centrais. As paisagens são riscadas por trilhos, postes, vias ou faróis marítimos; o céu é um resíduo... E a luz, no combate ao naturalismo, perde o valor que tinha no impressionismo. É estilizada com austeridade, de modo sumário e abstrato, no sistema de composição à base de planos cromáticos.
Na crítica à perspectiva geométrica, Hopper soma-se a Cézanne, recusando a anotação impressionista e supondo a consciência como premissa. Verticais e horizontais, em paralelo com as margens da tela e contrapostas às diagonais essenciais à infinitude da perspectiva, dirigem a composição, exibindo os limites da tela e uma profundidade relativa. A insistência em vistas frontais e em cantos abruptos regula o ritmo da recepção, organizando uma visão medida. A concentração da significação pictórica ou o efeito de finitude, que questiona a representação, vem todavia de perversões à gramática da perspectiva geométrica: o uso de cores quentes no fundo; escala e talhe sem contraste acentuado para figuras atrás e na frente; a divisão da tela em planos de cor, segundo uma estrutura de grade típica do ideário moderno, que nega a idéia de um "continuum" e a expectativa de profundidade. A compressão da cena é realçada ao fundo pelos vestígios dos meios usados: pincel e quantidades variáveis de tinta.
O diálogo emancipatório do olhar e do discurso pictórico não leva à absolutização da arte, mas põe uma dialética com humor. Em "Night Windows" (1928), o ideal da tela como janela para o infinito é ironizado: as diagonais não rumam para o centro como na representação habitual do infinito, mas para as laterais, e rebatem o centro (prosaicamente ocupado por uma toalha sobre um traseiro e um aquecedor) na direção do olhar. Também de modo antitético, Hopper recorre, outras vezes, a linhas e planos frontais; por exemplo, no caso das fachadas que incluem painéis publicitários ou logotipos. Se, na pop, o plano frontal, o mais das vezes, implica uma aceitação estratificada da bidimensionalidade da tela, já em Hopper tal recurso frontal vem interceptar as linhas diagonais de profundidade e dialetizar a recepção mediante paradoxos visuais.
Cabe à arte potenciar tensões ou solucioná-las? Atendendo à primeira alternativa, as figuras humanas, como as demais formas representadas na obra de Hopper, supõem oposições e têm função questionadora. Assim, os vultos humanos contrapõem-se pelas curvas dos seus corpos seminus, pela opacidade estampada nos semblantes, por um olhar perdido e centrífugo, pela inação etc., aos ambientes ascéticos e geometrizados. Como manchas ou índices destoantes -sinais de excentricidade e dissonância essencial entre homem e ambiente-, essas figuras têm o valor e até a forma curvada de um ponto de interrogação. Interpelam a formalização rígida da ordem social, que se expressa, na obra de Hopper, pelas formas maiúsculas e severas sobrepostas à natureza? Como operadores de uma pergunta ou mapas de fendas da ordem social, estes corpos e fisionomias anônimos, no prosaísmo dos ambientes, geram, um após o outro, uma dúvida sobre a ordem. Mesmo metafísica, esta questão não deixa de ser política.
Como extrapolar uma identidade nacional a partir de obras estruturadas por oposições? O pré-requisito, já se vê, é esquecer das tensões estéticas dos trabalhos, dos conflitos da produção e da sua história. No caso presente, o esquecimento, por certo, não envolve lapso, mas estratégia, visto que Levin é autora do "catalogue raisonné" e de uma "biografia íntima" de Hopper, no prelo. Além disso, sendo o Whitney o guardião-mor da obra (2), caracteriza-se um ato em cadeia, em suma, o elemento de uma política cultural. E que implica -na idéia geral de afirmação nacional ou de resgate simbólico dos particularismos (varridos pela globalização)-, além do sentido da obra de Hopper, uma revisão normativizante ou pré-moderna da história do modernismo e do papel da arte. No fim das contas, uma volta ao velho faz-de-conta.

NOTAS
1. Em 1913, Hopper participou do Armory Show, primeiro evento nos EUA da arte moderna. Recusado pelos salões oficiais até 1920, quase parou de pintar. Durante dez anos não vendeu um único quadro. Sua primeira mostra individual ocorreu só em 1924.
2. Após a morte de Hopper em 1967, o museu recebeu da viúva, Jo Hopper, pouco depois falecida, um acervo de 2.500 trabalhos do artista.

ONDE ENCOMENDAR
Livraria Augôsto Augusta (r. Augusta, 2161, São Paulo, tel: 011/282-1830; fax: 011/280-1013)

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