São Paulo, terça-feira, 7 de novembro de 1995
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Impropriedades judiciárias

FÁBIO KONDER COMPARATO

A pequena semana de glória que o jovem juiz de Pirapozinho se forjou ao aceitar a denúncia de crime de formação de quadrilha contra os dirigentes do Movimento dos Sem Terra e ao mandar prender a mulher de um de seus líderes vai custar muito caro ao prestígio da magistratura, e é bom que assim seja. Quem sabe agora esse lamentável episódio, somado a tantos outros do passado recente, a começar pela recusa do Supremo Tribunal Federal em processar Fernando Collor, PC Farias e seus colaboradores justamente por formação de quadrilha, porá na ordem do dia a necessária e sempre adiada reforma do Poder Judiciário.
Ora, o ponto crucial dessa reforma, a meu ver, não é tanto a necessidade de se emendar a Constituição quanto o imperativo de uma preparação funcional de nossos juízes para o cumprimento de seus deveres constitucionais. Nesse, como em todos os demais segmentos do Estado, a sociedade brasileira continua exibindo o mais solene desprezo pela educação de seus dirigentes.
No caso dos magistrados e dos membros do Ministério Público, a deficiência educacional não ocorre apenas no campo técnico -pela ignorância, muitas vezes, dos rudimentos da ciência do Direito-, mas aparece também e sobretudo no terreno ético, pela completa incultura cívica de grande parte dos homens e mulheres a quem foi confiada a missão de zelar pelo respeito aos valores básicos da cidadania.
É exatamente esse despreparo técnico, aliado à imaturidade cívica de nossos juízes e promotores, que se patenteia nos casos de conflitos fundiários. Da criminalização do Movimento dos Sem Terra de Pirapozinho ao despejo à bala das famílias de posseiros de Corumbiara, passando pela expedição em série de centenas de interditos proibitórios contra os seringueiros do Acre a pedido de patrões e latifundiários, o que vem a furo, agora, é a disfuncionalidade de um poder que, em vastas áreas do território nacional, trabalha contra os valores fundamentais de nosso regime político, dos quais é supostamente defensor.
Raros são os juízes e promotores, pelo Brasil afora, capazes de distinguir, no entrechoque dos interesses em conflito, o que é matéria de direito privado do que constitui objeto dos direitos e deveres fundamentais do cidadão, de modo a submeter aquela a estes. Diminuto é o número dos que têm ciência e consciência de que a Constituição só considera direito fundamental a propriedade indispensável à proteção da autonomia pessoal, recusando esse título à propriedade utilizada como instrumento de acumulação de riqueza. Muito poucos os que sabem que, ao lado do direito de propriedade, a nossa Constituição consagra o direito à propriedade (do qual o acesso à terra é uma das espécies) e que o uso dos bens próprios no sentido de sua função social é um dever público (art. 5º, nº 22) contra o qual não podem ser opostos títulos de domínio, por mais legítimos que sejam.
As nossas escolas da magistratura e do Ministério Público ainda não se deram conta de que elas não existem apenas para ensinar as tecnicalidades do processo, mas sobretudo para formar os futuros magistrados e promotores no conhecimento e respeito dos valores próprios da ética republicana e democrática, consagrada na Constituição. Quando esta declara que um dos objetivos fundamentais de nossa organização republicana é erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, nº 3), não está empregando uma fórmula retórica ou fazendo mera recomendação de estilo aos governantes. Ela está impondo uma norma de conduta a todos os ramos do Estado, inclusive o Judiciário. A realização da igualdade de condições básicas de vida é tão vinculante para juízes e promotores quanto o é o princípio da isonomia ou igualdade perante a lei. Uma decisão judicial que dele faça pouco caso, sobrepondo direitos privados a deveres públicos do cidadão, é claramente inconstitucional.
Montesquieu observou, agudamente, que cada regime político, para subsistir, deve ter um sistema educacional correspondente aos seus princípios. Não é exagero dizer que a subsistência do regime democrático, entre nós, encontra-se hoje, mais do que nunca, na dependência da formação cívica que soubermos dar aos órgãos do Estado incumbidos de garantir o respeito aos valores supremos da liberdade, da igualdade e da solidariedade.

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