São Paulo, quinta-feira, 9 de novembro de 1995
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Brasil brasileiro

OTAVIO FRIAS FILHO

Virou um clichê dizer que o capitalismo gera contradições, mas isso é próprio de qualquer sistema, aliás é próprio da condição humana, que só existe como dualidade inconciliável: vida e morte, razão e paixão, igualdade e liberdade. Podemos dizer que é falso tudo aquilo que não possa ser percebido como contradição.
Não existe contradição, portanto, no sentido pejorativo do termo, no fato de que a globalização convive com os separatismos mais cruentos, com a autodestruição da antiga Iugoslávia, com o fanatismo irredutível no Oriente Médio, até com as veleidades de independência do plácido Québec. Integração e xenofobia são duas faces da mesma moeda.
É como se o sentimento de patriotismo, de identidade nacional, já não tendo mais uma superfície concreta onde aderir, pois as fronteiras econômicas e culturais de repente evaporaram, passasse a se reproduzir em escala e ritmo fantásticos, agarrando-se às heranças mais específicas, às tribalidades mais estreitas, aos delírios mais regionais.
No caso brasileiro, o recurso ao específico, no entanto, não funciona porque nossa divisão "regional" sempre foi entre ricos e pobres, entre doutores e povão. O que corresponde ao separatismo, no nosso caso, seria auto-integração: o sonho de uma cultura autêntica, popular, enraizada no repertório ibérico enriquecido pelas tradições africanas e indígenas.
O maior intérprete vivo desse sonho, Ariano Suassuna, deu conferências sobre o assunto nesta semana em São Paulo. Autor de "Auto da Compadecida", uma das obras-primas do nosso teatro, o dramaturgo pernambucano veio a convite do Teatro Brincante, uma espécie de aldeia de Asterix da cultura sertaneja que resiste, solitária, cercada pela menos brasileira das nossas cidades.
Centenas de pessoas, a maioria jovens, fizeram fila para ouvi-lo. Alto, magro e aristocrático, vestido de linho branco à moda nordestina, o mito falou em pé por duas horas. Arrancava aplausos ao citar trechos de Cervantes, Góngora, Calderón, Camões e Gregório de Matos; risos maravilhados quando entrelaçava clássicos com versos e "causos" de trovadores sertanejos.
A sensação era a de ouvir Tolstói falando sobre a Rússia. Todo um panorama de encantos ancestrais, de tradições seculares, de religiosidade atávica, de pertinência, enfim, voltou à luz durante aquelas duas horas. Dava vergonha de sermos tão paulistas, tão deslocados, tão ignorantes, igualmente alienados daquele mundo primitivo e do mundo moderno que nos vem "de fora".
No final, Suassuna cantou e dançou um frevo, que fazia alusões à vitória da cultura popular sobre seus adversários. Ele pulava com o afinco de um etnólogo apaixonado pela cultura da sua tribo. Essa cultura é o que nós temos de mais arcaico e talvez de melhor, mas o suporte econômico-social a que ela corresponde desapareceu, felizmente, aliás, ou está à beira da extinção.
Não parece possível desenvolvê-la artificialmente, sem a presença das formas vivas que a engendraram. Para o bem ou para o mal, o futuro da nossa cultura parece estar na outra tradição local, cosmopolita e "litorânea", permeável às influências estrangeiras e ao ecletismo moderno, tradição essa que ganha impulso com a globalização. Talvez Suassuna saiba disso e não ligue a mínima, ele que se comparou ao temerário Quixote.

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