São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
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Desrespeito à Justiça enfraquece democracia

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A Constituição diz que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. O uso do termo "Democrático", tomado em si mesmo, nada diz de útil. Lembro que, no tempo das duas Alemanhas, separadas pelo muro odiento, a oriental se chamava República Democrática, não obstante fosse uma forte ditadura do comunismo do velho estilo. Lá o nome era mera indicação formal, sem vínculo com a realidade política do país.
A democracia substancial é provida de vários característicos essenciais, através dos quais se garante o respeito de cada pessoa e da sociedade, considerada como um todo. Um deles, o mais óbvio, consiste na possibilidade de substituir o governante, em prazos determinados, pelo voto livre e soberano do povo. Outro, é a reparabilidade do dano ou da ameaça de dano através de decisão do Poder Judiciário, cujo cumprimento é imperativo e inevitável, depois que não caiba mais qualquer recurso da parte vencida.
Para o trabalhador do direito é impensável que alguém possa recusar o cumprimento de tal sentença. Quando nenhum recurso for possível, a sentença adquire qualidade de coisa julgada, isto é, torna-se imutável. Se alguém desprezar ou ofender a coisa julgada e não sofrer a punição necessária, o jurista se convence de que a democracia desapareceu ou está em vias de perecer.
Tomo o exemplo do Movimento dos Sem Terra, uma realidade social evidente (a dos muitos que não têm um espaço minimamente digno para sobreviver), que contrasta com a realidade jurídico-constitucional da inviolabilidade da propriedade, afirmada no artigo 5º da Constituição, desde que cumpra sua função social.
Entre os dois valores, o jurídico e o social, a invasão de terras privadas, produtivas ou não, tem evidente caráter revolucionário, cujos contornos são ressaltados pela história. São os camponeses (ou os que se fingem de camponeses, por razões políticas) desrespeitando as regras da convivência sob a Constituição e o Direito para, em seguida, recusarem-se à obediência a ordens judiciais de desocupação, ainda que negada a cassação de liminares nos tribunais de segundo grau. Ou, são os que, tendo recebido terras em assentamentos, tratarem de as vender, fazendo bom dinheiro.
No desrespeito e na violação têm o apoio -disfarçado ou expresso- de autoridades públicas, cujo entendimento político é o de favorecer a conciliação com os invasores, ainda que sacrificando o respeito devido às ordens judiciais. A gravidade se torna mais séria ainda quando o próprio Judiciário se recolhe, atemorizado, sem impor sua condição de Poder, com maiúscula. Nesse ponto, em que a defesa dos Sem Terra adota medidas jurídicas para proteger seus líderes, é fácil para o trabalhador jurídico compreender a beleza da democracia. Os comandantes do movimento têm direito fundamental de obterem ordens judiciais que os garantam e amparem.
É difícil, porém, de entender como os mesmos que se servem do Direito e da Justiça oficial para defender-se -em conduta justa e legítima- persistam em desrespeitá-la quando a ordem dada não lhes convenha ou não corresponda a seus interesses políticos. Cria-se paradoxo reprovável. Quando agem por esta forma não ameaçam a propriedade privada. Ameaçam a sobrevivência democrática.

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