São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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A revolta das comunidades

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma palavra invadiu o vocabulário político: comunidade. Ao longo de todo o século 19, foi a idéia de nação que triunfou tanto na Europa quanto na América do Sul, sob a influência dos modelos francês e americano.
Os movimentos de libertação nacional e a queda dos impérios coloniais possibilitaram a difusão do ideário nacional na África, no mundo muçulmano e em toda a Ásia. Neste final de século, porém, em que o mercado globalizado é testemunha da formação de entidades supranacionais como a Comunidade Européia, o Nafta ou o Mercosul, a idéia nacional aos poucos perde sua força.
Atualmente, a resistência à abertura internacional dos mercados é imposta pela noção de comunidade, ou seja, pela identidade cultural de uma população definida por sua natureza social comum: língua, etnia, sexo ou idade.
Uma reviravolta de fato surpreendente. Estávamos convencidos de que a modernidade definia os indivíduos pelo que fazem e não pelo que são, mas vemos agora o desaparecimento das identidades de classe e a importância renovada conferida à religião e à etnia. A própria idéia nacional mudou de sentido. Para os herdeiros de Rousseau, ela designava a criação de uma coletividade de cidadãos livres; hoje, na esteira do pensamento alemão, ela designa o vínculo representado por uma comunidade cultural ou histórica.
É possível que tal mudança assuma formas positivas. A abertura internacional das economias tende a agravar o dualismo denunciado há muito pelos economistas e sociólogos latino-americanos. Os índios da América do Sul e da América Central, por exemplo, são simplesmente afastados da modernização econômica; além de perderem suas terras, são forçados ao exílio ou são vítimas de verdadeiros genocídios, como na Guatemala do início dos anos 80.
A consequência disso é a formação de movimentos indígenas que ora se alinham às guerrilhas patrocinadas pela classe média urbana, ora resistem ao levante revolucionário, como foi o caso dos Mesquitos na Nicarágua. Tais movimentos, sustentados por uma resistência desesperada, muitas vezes conduzem a impasses e rapidamente se fragmentam, a exemplo do movimento khatarista na Bolívia dos anos 70.
Outras vezes, porém, são reabsorvidos pela vida política nacional, isto é, associam a defesa de uma identidade cultural às reivindicações econômicas e políticas baseadas em instituições democráticas. É o que ocorre no momento em Chiapas, onde o movimento zapatista encoraja a reconstrução de um sistema político em ruínas e desempenha o papel de uma força ativamente democrática.
O mesmo caminho foi seguido por Rigoberta Manchu na Guatemala e pelo movimento reformista dos aimarás, sob direção de Víctor Hugo Cárdenas, vice-presidente da Bolívia. Junto com o presidente Sánchez de Losada, os aimarás pretendem construir um Estado de direito nos municípios, substituindo os antigos caudilhos pelos representantes "institucionalizados" do sistema de decisão indígena.
Em outros casos, tornou-se impossível essa aliança da consciência comunitária com a reivindicação social, sobretudo porque a consciência comunitária mudou de sentido. Em algumas cidades de países ricos, os imigrantes ou refugiados se impregnam do consumo característico da cultura de massas. Isso ocorre principalmente nos países em que se permite a naturalização, como a França e os Estados Unidos, mas não na Alemanha, onde o direito de sangue reina quase absoluto e impede o acesso dos turcos à nacionalidade alemã.
Os membros dessas "minorias", quando não se integram por meio do trabalho e sobretudo quando se chocam com a rejeição de uma população incerta de seu futuro, adquirem uma consciência comunitária negativa, já desvinculada de suas raízes culturais, reagindo com violência à exclusão, à xenofobia e ao racismo. Tal consciência não busca defender um grupo étnico ou religioso; na verdade, ela é um meio de retração e defesa contra uma sociedade considerada hostil.
Essa retração comunitária é também um meio de escapar à decomposição. O exemplo mais conhecido de tal comunitarismo é o movimento chefiado atualmente por Farrakhan: os Black Muslims se opuseram diretamente a Malcolm X, depois que o líder negro abandonou a pregação da violência e escolheu o caminho da ação política institucional.
Na Inglaterra e na França, esse retraimento do islamismo significa tanto a preservação das tradições quanto uma postura agressiva. Nesse último caso, o espírito comunitário transforma-se num simples expediente político, utilizado por dirigentes totalmente desvinculados da tradição. Geralmente empregamos a palavra "fundamentalismo" para designar tais movimentos no mundo árabe ou indiano.
No mundo protestante, no entanto, esse termo indica o retorno às fontes originais da Reforma de Lutero e Calvino; ora, as facções que podemos chamar de integristas são o oposto dos movimentos fundamentalistas. Sua concepção é mais política do que religiosa, mais modernizadora do que tradicionalista, e seu fundamento não se baseia na idéia de comunidade, mas na consciência de privação, de crise e de exclusão. Sua importância deve-se apenas à atitude hostil do liberalismo triunfante, que se serve de uma minoria como bode expiatório para suas inquietações com o crescente desemprego.
Nesse contexto, a repressão policial (muitas vezes inevitável devido aos índices de criminalidade) acelera a formação de uma consciência indignada, frustrada e próxima à delinquência, como os Black Muslims nos Estados Unidos e a onda de violência terrorista que assola atualmente a França.
A única maneira eficaz de pôr um fim às hostilidades é reforçar o conteúdo positivo da comunidade cultural. Para os países ocidentais, reconhecer o islamismo é um meio indispensável para deter o crescimento de uma atividade mais política do que religiosa e mais violenta do que reivindicativa. Em suma, trata-se de abandonar o segundo comunitarismo, baseado na privação, e retornar ao primeiro comunitarismo, fundado na afirmação e na defesa de uma identidade inseparável dos interesses econômicos e das reivindicações políticas.
É pouco provável que ressurja o individualismo universalista do século 18 e da filosofia das Luzes. O reconhecimento das identidades e diferenças culturais é o único meio de evitar a ação violenta daqueles que se sentem despojados de sua identidade cultural ao ingressarem na sociedade de massas -uma sociedade que os atrai pelo consumo, mas lhes nega o trabalho imprescindível a uma verdadeira inserção comunitária.

Tradução de JOSÉ MARCOS MECEDO

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