São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 1995
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A cultura

DARCY RIBEIRO

Acabamos de viver uma bela semana de incentivo à criatividade cultural empreendida pelo ministro Francisco Wefford. Foram exposições, conferências, concertos, além de expressões das artes populares no curso das quais se deram prêmios assinaláveis.
Participei da iniciativa curtindo tudo que se oferecia, alegre, mas preocupado com sua continuidade. Vi muitas vezes premiações serem instituídas, conferidas, para serem logo descontinuadas.
Inclusive a mais importante delas, o Prêmio Estado de São Paulo, de US$ 100 mil, do Memorial da América Latina. Seu propósito era fazer de São Paulo o avaliador e premiador do desenvolvimento das artes, das ciências, das letras e das humanidades em toda América Latina.
É preciso que não aconteça o mesmo com a última semana plena de autênticas manifestações culturais e premiações. A cultura é a mais importante das atividades humanas. Ela, inclusive, é que nos faz humanos. Através dela é que nos criamos em uma comunidade de língua e de costumes ganhando nossa identificação étnica e nacional.
A cultura é que nos guia em nossa adaptação ecológica ao ambiente em que vivemos. É ainda a cultura que nos estrutura e organiza para convivermos socialmente. É ela que nos provê os modos de nos expressarmos como criadores originais nas áreas das artes, das ciências e dos cultos. Afinal, é a cultura que nos faz a gente singular que somos, diferente de todas as outras.
A cultura é bifronte e diferenciada. Só pode alçar-se e voar porque tem duas asas. A da cultura erudita, monopólio de uma minoria, mas importantíssima para a sociedade que a detém e que ela configura e expressa em todos os domínios. E a chamada cultura vulgar, dominada por todo o povo, diferenciada por coloridos regionais, mas unificada como a conformadora do que somos nós os brasileiros.
Uma e outra podem ser mais autênticas ou mais espúrias conforme nos ajudem assumir o nosso ser e a realizar nossas potencialidades ou, sendo meramente imitativa, nos amarre ainda mais ao atraso, para sermos o que outros pretendem que sejamos.
A cultura elitista nos dá os espelhos em que nos mostramos e em que aprendemos a nos ver pela nossa música e por nossa literatura, pelas artes gráficas e plásticas, sempre sob o risco de nos alienarmos. A cultura vulgar, de domínio das massas, nos dá, entre mil coisas mais, a música popular, nosso estilo único de jogar futebol e, por exemplo, o culto a Iemanjá, que vale tanto quanto todos os romances que escrevemos.
Iniciada há poucas décadas nas praias do Rio, essa religiosidade se espalhou pelo Brasil. A Iemanjá não se pede a cura do câncer ou a extinção da Aids. O que pedem a ela milhões de pessoas, ritualmente vestidas de branco, é que o marido não bata tanto e que o namorado seja mais amoroso. Desde a Grécia não se inventava uma deusa que faz o amor e ajuda a amar.
O povo do fundo, sobretudo o povo negro e mulato que reinventou Iemanjá, é capaz de nos fazer florescer, amanhã, como a mais criativa e autêntica das civilizações quando ele tiver acesso aos instrumentos da cultura letrada.
Por tudo isso é importante incentivar a cultura, sem meter a mão no trabalho dos poetas, dos romancistas, dos cineastas. E também sem interferir nos gestos de criatividade dos ceramistas, dos trançadores de balaios, dos tocadores de berimbau e dos cultores de Iemanjá. Livre e autônoma, nossa cultura brasileira nos fará mais belos e melhores.

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