São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 1995
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Vejo em minha febre a política nacional

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Peguei uma gripe da pesada, gente boa. Daquelas que derrubam o cavalo no fundo da baia. Eu jurei que nunca escreveria um artigo sobre a falta de assunto. E estou cumprindo a promessa. Não estou sem assunto. Estou doente. Sou pago para pensar e minha cabeça não entra em foco, meus olhos choram, minha vontade é deitar, não na cama, a cama é pouco, mas no chão; mais que no chão, num chão intemporal de descanso total, que me livrasse das culpas e das responsabilidades. Esta a única vantagem da doença: um grande alívio nos toma diante do mundo, como um ferido à beira da batalha, os outros lutando e ele na paz da impotência.
Há um tempo, quebrei o braço. E creio, meu pobre estilo melhorou, pois tinha de escrever com um dedo só e a dor me obrigava a períodos menores. A frase menor dói menos. Tirei adjetivos, não perfumei palavras. Mas, "falo falo e não digo o essencial", frase-bordão de Nelson Rodrigues, que também me dizia: "Os inimigos me criticam dizendo que minhas peças cariocas têm um estilo pobre. Se eles soubessem o esforço que faço para empobrecê-las...." (Vejo que a gripe está gerando um "making of" de mim mesmo, um "fluxo de consciência" meio barato, um "joycezinho" de farmácia...).
Pois é. Mergulhado na névoa dos espirros, caído na cama onde escrevo à mão, com uma velha Bic num caderno da minha filha Juliana (onde andará a outra, Carolina, em que "clipe" se escondeu?), sinto-me perdido entre vários assuntos, Nelson Rodrigues (sempre este homem fatal) me disse uma vez ao telefone: "O assunto é o autor do autor!". Perfeito. Através dos lenços empapados, entre xícaras de leite queimado que Suzana, a açucena florida, me traz, vejo o Brasil como um caleidoscópio febril. A televisão está ligada e minha cabeça pula de um tema para outro, como um "zapping" mental. Quem sou eu e quem é a TV?
Subitamente, eu vejo. (Será a ilusão do delírio?) Diante de meus olhos vermelhos se abre o "Aleph" da nacionalidade! Sim, como no conto famoso de Jorge Luis Borges, onde o herói encontra um ponto do universo para onde tudo converge (o "aleph"), onde ele vê tudo, eu começo a ter visões! Eu começo a ver na minha febre, como um Borges de segunda classe, eu começo a ver!
Eu vi. Como no seu conto, eu vi: "O populoso mar, eu via a aurora e a tarde, eu vi as multidões do planeta, vi raízes, neve, vapor d'água, desertos convexos e cada grão de areia, mulheres lindas inesquecíveis e suas violentas cabeleiras, vi o poente, vi cavalos de crina em caracol..." Mas, upa, de repente, vi o Congresso em Brasília, vi o Planalto! Santo Deus, meu "Aleph" começou a ser invadido pela política nacional! Ainda tentei e consegui ver "um velho astrolábio persa, espelhos de feiticeiras, caravanas coloridas", mas logo surgiu em meus olhos a Polícia Militar do Paraná com vinte homens apontando fuzis para um barbudinho que era agarrado como um cão! Vi também um capitão da PM dizendo que os reféns que morreram no assalto do Morumbi eram humildes e sem cultura! Vi os sem-terra sendo baleados e mancando, (onde está minha cabeça, onde está a TV?).
Mudo de canal mental e vejo um filme: um casal num bar japonês. O "sushi-man" com uma grande face degola a mulher loura, jorra sangue vermelho, o marido agarra a cara do japona e zás! Frita a cara dele na chapa de lulas! Dói-me a violência do filme! Pulo para a violência do Rio, os eternos policiais subindo morros, os mesmos garotos com AR-15, os mesmos camburões campados e penso: "Que adianta este lero-lero humanista sem grana? Quanto o Governo Federal vai dar de verba para comprar armas, helicópteros, sanear favelas, em vez de fazer submarino nuclear para a Marinha?" Vejo o submarino da Marinha no rio da Prata, atacando Buenos Aires, sob música de Piazzola...
Vejo que este Aleph gripal não está me revelando nada. Sinto que há um segredo que ainda vou descobrir. Há um erro essencial aí rolando neste governo, uma conclusão sobre nossa crise política que virá. Ainda vou entender. Mas, nada é claro ainda; é o cinza de um cinza, apenas uma luz fraca que vem vindo. Bem ou mal, meu "aleph" barato continua a funcionar. E vejo no poente dos morros do Rio, os sequestradores e traficantes! Tenho saudades dos antigos marginais românticos, pois os assassinos atuais têm nomes horríveis: "Rola Bosta". Terrível; ainda bem que existe o bandido "Mimi". Penso em Mario Reis, quem lembra? "Cadê Mimi, cadê Mimi?" Fujo com esforço para o "aleph" poético de Borges de novo, e vejo "a circulação do sangue, tigres, êmbolos, planícies com búfalos, serenos rostos de Fidias"... Mas, vejo o rosto de Sarney, o bigode de Sarney (que significa Sarney? É preciso descobrir que é Sarney!). Explode em meu olhos o rosto do deputado Euler Ribeiro, o relator da Previdência. Vejo que ele é um médico anestesista do Amazonas, vejo-o aplicando anestesia em um eleitorado de pobres ribeirinhos, todos paralizados à beira da floresta e vejo que Euler Ribeiro está vestido como um "blade runner". Euler Ribeiro está no ano 2035 e seu rosto conservado com um andróide está comunicando ao povinho que a partir de agora a previdência será reformada! Em 2035!
Súbito, uma luz me invade! Vejo a grande sala do Planalto e FHC sorrindo entre deputados seduzidos. Sinto que ali está pairando o Erro, como uma névoa escura. Sim, talvez seja este o grande erro político. O Planalto flutua solitário. O Congresso parece uma paisagem distante. Mais longe ainda, as multidões vagam, a opinião pública gagueja sem informação de nada. Falam de reformas, mas ninguém sabe para quê. O Governo não informa. A única energia que tenta unir estes vértices é o vago sorriso do gato de Alice de FHC.
Querendo fugir do messianismo tradicional, FHC talvez tenha caído em outro tipo de auto-suficiência. Como fazer reformas sem a convocação profunda da sociedade civil? Tudo tinha de ser muito bem explicado a população. Talvez precisemos de um porta-voz claro feito aquele cara das Lojas Americanas ("passa aqui!").
Talvez seja impossível governar o Brasil sem virar um "pai simbólico", como diz Sergio Buarque. Mas, será que FHC, na tentativa de "usar" para "criticar", não terá se envolvido na personagem de si mesmo?. Em minha febre, vejo o erro do personalismo se formando em volta a FHC.
Outra visão de horror: como explicar que os relatórios das reformas constitucionais tenham caído nas mãos de homens catimbeiros como Ronaldo Cunha Lima, Prisco Viana, Euler Ribeiro, Jair Soares e agora Moreira Franco? Não podia ter acontecido isso. Há um buraco negro entre o Executivo e os agentes políticos. Será que FHC está sofrendo do "efeito Gorbachov"? Será que ele acha que tudo pode se resolver com a sedução de última hora? Acaba um Ieltsin bêbedo em seu lugar FHC, fugindo de um "messianismo paranóico", caiu num "messianismo narcisico", um "messianismo cordial", que o faz prescindir de intermediários políticos fortes, deixando tudo ir por água abaixo para poder salvar o barco na última hora. Na minha febre, vejo que está havendo a sedução do perigo. Vejo com horror que parece haver um único mecanismo de fazer política no Brasil: um pêndulo que oscila entre a sedução e a chantagem. De um lado, o "charme" do Executivo; do outro, a chantagem dos congressistas. Onde está a opinião pública? Não precisa se convocada? Tudo isso deve ser loucura minha, é a febre.

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