São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 1995
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Filme mostra o que não queremos ver

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O Olhar Triste" é um documentário para a televisão, feito por Olívio Tavares de Araújo, com depoimentos de pessoas contaminadas pelo vírus da Aids. A TV Educativa do Rio, em rede com outros Estados, interessou-se em exibí-lo (a transmissão estava marcada para ontem, terça-feira, depois do horário de fechamento desta edição). Já a direção da TV Cultura de São Paulo, segundo se noticia, não quis levar o documentário ao ar, considerando-o excessivamente forte.
É forte mesmo. Hesitei bastante antes de ver a cópia em vídeo que recebi. Por mais que se fale na necessidade de divulgar o problema da Aids, de esclarecer o público, de estimular a solidariedade aos soropositivos, trata-se de uma realidade que os meios de comunicação, e as pessoas em geral, não querem encarar muito de perto.
A propaganda do uso da camisinha é sempre festiva, animada, com musiquinhas e brincadeiras. É uma espécie de Show da Xuxa do preservativo. Não critico essa festividade; trata-se de atingir o público da melhor maneira possível, e quase todo mundo se sente psicologicamente frágil diante do tema. Talvez fosse mais eficiente explorar, na propaganda, outras formas de fragilidade psicológica, como o sentimentalismo ou a morbidez do espectador.
Mas haveria um risco nessa estratégia; o público, querendo rejeitar uma realidade dramática, terminaria rejeitando a mensagem da prevenção; tenderia a fugir de um problema exposto com excessivo realismo.
"O Olhar Triste" é um documentário forte e realista. No início, há algumas cenas hospitalares que certamente são pouca coisa para médicos e enfermeiros, mas que ao leigo não são fáceis de ver. Seria então compreensível a atitude da TV Cultura? Não digo justificável, mas compreensível, por uma espécie de pudor, de recusa ao sensacionalismo?
Só que no filme de Olívio Tavares de Araújo não há sensacionalismo nenhum. Mostra apenas aquilo que não queríamos ver. Passado o choque inicial, o documentário dá a palavra às vítimas da doença, quase todas pobres, na maioria das vezes muito solitárias. São rostos em frente à câmera, contando sua experiência de convívio com a doença.
O documentário não apela, assim, para o horror da realidade, que provavelmente levaria o espectador comum a desligar a TV. Não acumula cenas desagradáveis uma depois da outra. Ao contrário. Depois do impacto do começo, ajuda o espectador a absorvê-lo, a elaborá-lo psicologicamente.
É basicamente isso o que contam os entrevistados. Não há discursos de desespero; alguns depoimentos amargos, sem dúvida, mas principalmente uma atitude de coragem. E a coragem em sua forma mais admirável, talvez a única verdadeira, que é a coragem sem otimismo; uma virtude que se exerce com doses muito pequenas de esperança. Trata-se de viver, de resistir.
Surgem, é claro, paradoxos nessa atitude. Fala-se de um doente que considerou a Aids "a melhor coisa que já lhe aconteceu", pois só depois da doença pôde contar com o apoio e a ajuda de outras pessoas. Defesa psicológica, sem dúvida; tentativa exasperada de extrair o bom daquilo que é péssimo. Mas não sei se se trata apenas de uma fuga da realidade; ao contrário, ou também, trata-se de uma maneira de enfrentar a realidade. Outro entrevistado, um diretor teatral, fala de uma experiência ainda mais complexa. Cuidou de seu companheiro, também doente; tirou-o do hospital nos últimos dias, para que morresse em casa. O entrevistado conta que, naquele momento, sentiu-se "feliz". Procurou em seguida explicar melhor a frase; a infelicidade era enorme, obviamente, mas acompanhada sem dúvida do sentimento de estar fazendo o que devia ser feito, ou, mais do que isso, do sentimento de estar amando verdadeiramente alguém.
Mas o tom deste artigo está ficando retórico demais. A característica de toda retórica talvez seja, com efeito, a tentativa de reproduzir, pelo discurso, emoções que não foram sentidas de fato por quem está falando ou escrevendo.
É uma armadilha que o documentário evita com total simplicidade. Não mostra os doentes como se fossem uma "terceira pessoa", como se fossem "eles", os doentes. Faz apenas com que ouçamos o que eles têm a dizer, sem intermediários, e sem retórica.
Não se trata, assim, de um filme sobre como prevenir a Aids; está lutando contra a solidão que a doença provoca, e se, nada garante que depois dele o espectador faça alguma coisa de concreto, pelo menos rompe-se, digamos assim, a quarentena psicológica que, com tantas campanhas e esclarecimentos, continua a cercar a questão.
Mas se fosse aparecer na televisão, ou em outdoors, tudo aquilo que eles já viram nos hospitais, imagino que a rejeição do público seria enorme. Fica-se com aqueles avisozinhos do ministério da Saúde depois dos anúncios de cigarro. É como se toda propaganda, mesmo a de interesse público, não pudesse chegar perto demais da realidade. Os meios de comunicação têm força demais, para um público fragilizado demais.

Estou tirando um mês de férias. Deve estar saindo, enquanto isso, um livro meu de contos infantis, "A Professora de Desenho e Outras Histórias", pela Companhia das Letrinhas.

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