São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 1995
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Cidadania à deriva

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Li o artigo do deputado José Aníbal, publicado na Folha de 8/11, na esperança de que pudesse ele afastar os temores expressos em "Fujimorização à moda tucana".
Nada obstante o esforço de S.Exa., seus argumentos aumentaram meu receio de que o processo de redução dos direitos da cidadania, de fortalecimento do Executivo em detrimento de outros poderes e de redução da força das entidades federativas é hoje uma realidade.
Há anos defendo que a estrutura estatal deve ser enxugada e que não é possível o país conviver com uma Federação maior do que o PIB. O problema fundamental do Estado, no Brasil, não é o do aumento de receitas, mas de redução de despesas.
Tanto é assim que quando os então senadores Mário Covas e Fernando Henrique teciam irrestritos elogios ao texto aprovado em 5/10/88, estava eu na desconfortável posição de dizer que a "Constituição Cidadã" era autofágica.
Hoje, fico feliz de verificar que os combativos defensores do texto de 88 adotaram posições muito semelhantes à minha.
O fato de sempre ter sustentado a necessidade de alteração da Constituição não impede que reconheça que devam ser preservados os direitos e garantias individuais e coletivos, os quais podem ser atingidos pela reforma.
Nos sete pontos em que S.Exa. critica meu artigo, suas palavras são o reconhecimento de que tenho razão.
1) No primeiro, o seu artigo declara que pretendia o governo flexibilizar o empréstimo compulsório, mas que essa intenção foi afastada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Ocorre que, no projeto do governo, o empréstimo compulsório "para investimento público relevante" permanece, podendo este vir a ser utilizado, com a mesma eficácia daquele para "absorção temporária do poder aquisitivo", bastando que seja instituído e destinado a um investimento qualquer.
Por outro lado, não mais havendo a garantia de lei complementar para criá-lo e sendo suprimidos a necessidade de urgência, constante do texto atual, e o "princípio da anterioridade", à evidência tal empréstimo, se aprovada a reforma, poderá ser instrumentalizado até mesmo por medida provisória, visto que a vedação de utilização de tais veículos legislativos para "regulamentar" dispositivos constitucionais não se aplica aos dispositivos já "regulamentados" na lei suprema.
2) O segundo ponto diz respeito ao artigo 153, parágrafo 2º, inciso III da PEC 175, que foi por mim criticado, e não à proposta do imposto sobre a renda -legislação ordinária sobre a qual já me manifestei favoravelmente a grande parte dela, pois a considero inovadora e simplificadora. O artigo 153, parágrafo 2º, da proposta cria obrigação tributária sem fato gerador.
As "antecipações" do texto, a que tenho me oposto, quando colocadas na legislação ordinária, se autorizadas em texto constitucional, abrirão fantástico leque para a criação de receitas a partir de fatos inexistentes, com promessa de devolução futura.
3) No terceiro ponto, declara S.Exa. que a redução de "quórum" para aprovação de empréstimos compulsórios ou novos impostos não acarreta redução de direitos dos contribuintes na medida em que a criação do IPMF deu-se por emenda constitucional, para cuja aprovação é necessário "quórum" muito superior ao da própria lei complementar.
Ora, pergunto: se foi aprovado o IPMF com "quórum" superior e se pode o governo conseguir a aprovação do que pretenda mesmo com "quórum" superior, por que reduzi-lo? "Quem pode o mais, pode o menos", diz velho brocardo.
4) Quanto ao quarto ponto, informo S.Exa. que li -e repetidas vezes- a PEC 175, principalmente o dispositivo em que o Senado Federal por resolução (artigo 155, inciso IX):
"a) poderá reduzir, gradualmente, a alíquota estadual e distrital federal, hipótese em que a alíquota da União será acrescida, automaticamente, dos pontos percentuais que vierem a ser reduzidos; ou
b) poderá estabelecer procedimentos que atribuam, gradualmente, o produto da arrecadação da alíquota estadual e distrital federal, parcial ou totalmente, ao Estado ou ao Distrito Federal de localização do destinatário da mercadoria" (grifos meus).
Por ele, não só o Senado Federal, que é órgão legislativo da União e não dos Estados, pode diminuir as alíquotas de ICMS dos Estados e aumentar as da União como poderá adotar a incidência do destino (totalmente) ou fazê-la conviver com a incidência de origem (parcialmente) para qualquer unidade federativa, por proposta do presidente da República.
Tal dispositivo enfraquece a Federação, atingindo a principal receita dos Estados e sua autonomia financeira.
5) No quinto ponto, como, na proposta governamental, é a lei complementar que definirá quais são os casos de "contratação sem concurso" pela administração e como o governo não mandou a proposta de lei complementar simultaneamente, manifestei as dúvidas cabíveis, que poderiam desaparecer se a proposta de lei complementar tivesse acompanhado aquela de reforma constitucional.
6) Por outro lado, a quebra do sigilo bancário violenta o parágrafo 5º do artigo 60 da Constituição Federal, que proíbe a apresentação, em uma mesma sessão legislativa, de matéria já rejeitada, pois foi afastada sugestão igual pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara quando da proposta de reforma previdenciária.
7) No sétimo ponto, não contesta S.Exa. a determinação do D.L. 2.321/87, que permite a administração temporária para bancos públicos e privados, mas declara que os bancos estatais são mais seguros que os privados -mesmo que pior administrados e com rombos maiores- porque o Estado é uma "entidade perene". Em outras palavras, sugere que quem quiser não correr risco nenhum deve aplicar recursos em bancos estatais. Tal princípio pode gerar "estatização" da banca por força dos privilégios ofertados às entidades governamentais.
Como se percebe, defendi a tese de que as reformas propostas reduzem o direito dos cidadãos, fortalecem o Executivo e fragilizam a Federação. Nem por isso sou contra a filosofia de um enxugamento do Estado, mas defendo que seja viabilizada com instrumentos que respeitem os direitos e garantias individuais e coletivos, e quem defende os direitos dos cidadãos não está, à evidência, defendendo a mais ditatorial de todas as constituições brasileiras, que foi a 1937, denominada de "Polaca".
Escrevi artigo para levantar minhas preocupações com as propostas de reformas, preocupações essas que, infelizmente, foram consideravelmente adensadas com o artigo do deputado José Aníbal.

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