São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 1995
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"Memorial" faz crítica ao poder e à vaidade

ANTONINA LEMOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor português José Saramago é considerado um dos mais importantes autores vivos da língua portuguesa. Seu livro "Memorial do Convento" faz parte da lista obrigatória da Fuvest desde o ano passado.
Em entrevista à Folha, por fax, de Lisboa, além de falar sobre seu livro, o escritor respondeu também às questões sobre sua obra que caíram no exame da Fuvest.

Folha- O que o sr. acha de sua obra ser indicada para um exame que seleciona alunos para a universidade brasileira?
Saramgo- Acho que é um sinal de que poderemos vir a constituir-nos, efetivamente, como uma comunidade de língua portuguesa em que os livros circularão independentemente das suas origens nacionais.
Folha- Nos exames em Portugal também há uma lista de livros para a prova de literatura?
Saramago- "Memorial do Convento" também é indicado em Portugal.
Folha- Os estudantes que vão prestar o exame têm obrigação de ler o seu livro. O que o sr. acha de ver a sua obra como uma "obrigação"?
Saramago- Fazer qualquer coisa por obrigação nunca é agradável, mas não deveríamos esquecer que o conceito de obrigação é um conceito social amplo que abrange um conjunto de deveres, em muitos casos simetricamente correlativos de direitos. Ao direito ao ensino, por exemplo, corresponde o dever (a obrigação) de estudar. Mas eu preferia que a leitura fosse um ato voluntário de amor.
Folha- O sr. considera "O Memorial" uma boa escolha? Qual dos seus livros é mais adequado para jovens?
Saramago- Considero uma boa escolha. Quanto ao livro mais adequado para jovens, sugeriria "A Jangada de Pedra".
Folha- O sr. escreve quase sem pontuação. Por quê?
Saramago- No meu processo narrativo adoto os "mecanismos do discurso oral, em que também a pontuação não existe. A fala compõe-se de sons e pausas, nada mais. O leitor dos meus livros deverá ler como se estivesse a ouvir dentro da sua cabeça uma voz dizendo o que está escrito.
Folha- O sr. faz da história pano de fundo de seus romances. O que o atraiu na construção do convento de Mafra?
Saramago- Atraiu-me na história do convento de Mafra o esforço e o sacrifício dos milhares de homens que trabalharam na construção de monumentos à vaidade de um rei e ao poder da igreja.
Folha- Qual ponto o sr. considera mais importante no livro?
Saramago- O transporte da enorme pedra que é levada de Pero Pinheiro a Mafra.
Folha- O sr. admira Eça de Queiroz e Bocage, os outros autores portugueses que integram a lista? Quais autores portugueses ficaram de fora?
Saramago- Tanto Eça de Queiroz como Bocage são autores sumamente representativos. Que outros mais poderiam fazer parte da lista? Muitíssimos, quer do passado, quer da atualidade.
Folha- Para quem não querem ler as obras, editoras lançam resumos. O que o sr. acha disso?
Saramago- Parece-me um erro gravíssimo. No tempo em que fui novo, líamos os livros desde a primeira até à última página. Por este andar, tal como tantas vezes se ouve dizer: "Não li, mas vi o filme, não tarda muito que se diga: "Não li o livro, passei os olhos pelo resumo....
Folha- O sr. frequentou a universidade
Saramago- Não. A minha família não tinha recursos para isso.
Folha- Como o sr. analisa a questão sobre seu livro que fez parte da primeira fase (questão 25, à pág. Especial A-3)?
Saramago- Há alguns aspectos que conviria esclarecer. Em primeiro lugar, a subalternidade da mulher não é característica exclusiva da família tradicional portuguesa: continua a verificar-se hoje em todas as sociedades e em todas as famílias, tradicionais ou não. Em segundo lugar, não seria a batalha de Aljubarrota (1385), mas a de Alcácer Quibir (1578), que indiretamente estaria a ser questionada aqui, sendo certo porém que o episódio camoniano realmente evocado pelo autor é o do Velho do Restelo, na saída de Vasco da Gama para a Índia (1497). Em terceiro lugar, Inês de Castro não foi vítima de perseguições da Inquisição, mas duma decisão política de D. Afonso IV; isto não significa, dadas as relações de parentesco existentes entre Pedro e Inês (eram primos em segundo grau), que a Igreja não tenha tido influência no caso, mas o que está provado é ter-se tratado, principalmente, de um assassínio determinado por razões políticas.
Folha- Como o sr. responderia essa questão, que fez parte da segunda etapa do exame?
"Sentaram-se todos em redor da merenda, metendo a mão no cesto, à vez, sem outro resguardar de conveniências que não atropelar os dedos dos outros, agora o cepo que é a mão de Baltasar, cascosa como um tronco de oliveira, depôs a mão eclesiástica e macia do padre Bartolomeu Lourenço, a mão exata de Scarlatti, enfim Blimunda, mão discreta e maltratada, com as unhas sujas de quem veio da horta e andou a sachar antes de apanhar as cerejas." Qual é a figura de linguagem que o narrador utiliza para marcar as diferenças de nível e grupo social das personagens? Levando em conta, agora, o conjunto do romance, qual é o denominador comum das personagens acima mencionadas que permite que elas se aproximem, se solidarizem e se estimem uma às outras, apesar das diferenças apontadas?'
Saramago- Acho interessante que na escolha dos trechos de "Memorial" se tenha seguido o critério de atrair a atenção dos estudantes para questões tão essenciais como as relações humanas e os abusos do poder. No episódio da merenda de cerejas, o autor não pretendeu ignorar ou disfarçar as diferenças sociais e culturais que separam Baltasar e Blimunda, de um lado, e Scarlatti e Bartolomeu Gusmão, do outro. O que sim quis foi mostrar como em ocasiões excepcionais o sentimento de fraternidade humana, que dificilmente ainda vai sobrevivendo em nós, consegue subir à tona dos conflitos de interesses e dar-nos um rápido vislumbre duma vida humanizada.

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