São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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O fim do uniforme

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O universo do consumo está passando por um processo de diversificação de tal modo inesperado e fantástico, que destrói por completo todos os prognósticos propostos a respeito de sua função social e de seu papel alienador.
Envelheceram os tempos modernos, quando a divisão fordista do trabalho fazia esperar uma massa de produtos indiferenciados e sem rosto que, ao ser consumida, padronizaria os comportamentos e as personalidades, como se o mundo humano pudesse ser transformado num conjunto de moléculas dotadas de movimento browniano. Tecnologias flexíveis: uma inesperada associação de empresas multinacionais com pequenas empresas vicejando ao seu redor, mas diversificando a invenção de novos produtos; a globalização do comércio que, emprestando a todos os shopping centers a mesma organização, arquitetura e decoração, ao mesmo tempo termina expondo nas vitrines objetos das mais variadas procedências; tudo isso faz com que o mapa do consumo adquira uma multiplicidade e diversidade surpreendentes.
Ao invés da homogeneização ocorre uma diversificação capaz de servir a todos os gostos. Observe-se o que acontece no comércio dos discos. Numa grande loja de Nova York ou de Paris está exposta toda a história da música e qualquer um pode comprar um CD com canções da antiguidade grega ou peças de Orlando de Lasso, pagando um preço menor do que uma entrada de cinema. As casas se tornam discotecas, videotecas, acervos de cultura para todos os gostos. E se elas também são arrombadas pela TV de mau gosto, a multiplicação dos canais e, num futuro próximo, a TV interativa, personalizará a relação do espectador com toda a mídia.
No entanto, também é diferenciado o acesso a essa variegada paisagem do consumo. Não se imagine que exista um corte muito nítido entre as populações miseráveis e pobres, de um lado, e as remediadas e ricas, de outro. Se a tradicional contradição entre a maior riqueza e a maior pobreza, criada pelo capitalismo, continua a impedir que a maior parte da população humana tenha acesso a condições mínimas de sobrevivência, não é por isso que os pobres, mesmo deixando de consumir, careçam de padrão de consumo.
O menino mais pobre da periferia de São Paulo sabe perfeitamente que roupa deve vestir, que música deve ouvir, a que programa assistir, a fim de integrar-se nos grupos de sua idade. Isto provoca uma pressão cultural formidável, no sentido de uniformizar uma linguagem que deve estar em constante movimento, assim como faz crescer uma demanda por um consumo muito além dos níveis de sobrevivência. No entanto, como a tendência do grupo é diferenciar-se para ganhar identidade, o reflexo no consumo também é de diferenciação. A favelada pobre não quer apenas leite para seus filhos, mas também "danoninhos".
Se todos, porém, pressionam para penetrar no universo do consumo, as diferenças de classe emprestam a essas pressões sentidos diferentes. Peço licença para analisar experiências pessoais. Meus dois lindos netos, Alexandre e Tiago, estão em Orlando fazendo o aprendizado de meninos ricos. E eles são muito ricos. Seus quartos competem com qualquer loja de brinquedos de São Paulo. Eles não possuem apenas um exemplar do último boneco importado, fazem questão de ter todas as modalidades da série. O fluxo de novidades é tão grande que minha casa vai se tornando o depósito dos brinquedos rejeitados. Eles brincam com brinquedos novos como as mulheres de sociedade tratam de não repetir vestidos de festa. No último telefonema lhes perguntei: "De que estão mais gostando?", e a resposta veio unânime: "Compramos um monte de brinquedos novos".
O que significa o consumo para esses meninos de classe rica? O objeto vale como signo de manipulação lúdica, mas signo indiferente à materialidade do significante. Pouco importa este ou aquele brinquedo, pelo contrário, o objeto queima nas mãos, precisando logo ser substituído por outro, porquanto o importante é quebrar o selo, a virgindade da coisa, antes do jogo. O próprio jogo não vale tanto pelo prazer de seguir uma regra coletiva e ter sucesso na competição, mas sobretudo pelo gozo de apropriar-se de um objeto que poderia ser de outrem e permitir que faça parte de seu museu de objetos descartáveis.
Atitude muito diferente de meu jovem empregado (agora ele se diz funcionário). Há uns dois anos, logo que chegou da Bahia, fazia muito frio, e saí com ele para comprar um agasalho. Logo percebi seus olhos decepcionados diante de todos os casacos sem grife, até que seu rosto iluminou-se, quando avistou uma jaqueta Reebok. Hoje, quando sai de folga, em nada se distingue de um moço de classe média, cuidadosamente alinhado segundo a última moda. A roupa para ele vale como certificado de urbanidade. Sua postura está dizendo que sabe mover-se num determinado universo de consumo, cujas regras em constante movimento estão para excluir todos aqueles que não são capazes de acompanhar suas mudanças.
Tudo parece indicar assim que o mundo contemporâneo de consumo deixou de produzir idiotas robotizados não só porque se diversificou em quantidade e qualidade, mas ainda porque nele se penetra por portas diferentes, conforme as diferenças de classe daqueles que nele têm acesso. Mais do que paisagem natural colorida, o universo do consumo é um campo de batalha, no qual as diferenças provocadas pela divisão social do trabalho se manifestam na luta pela apropriação do produto. Mas, como sempre, no terreno onde as forças se chocam, existem indivíduos que, além de lutar, descrevem e cantam os feitos da guerra.
São eles os poetas, no sentido grego da palavra, operadores capazes de lidar com os meios à disposição e, a partir deles, criar um objeto que lhes escapa das mãos. Para esses poetas um futuro pode estar virtualmente aberto. Os poetas da política poderão inventar, nesse mundo massivo da comunicação, formas mais sutis de representar, mais adequadas para fazer constituir e valer as vontades populares. Os poetas do pensamento talvez descubram um modo mais íntimo de fazer valer a herança cultural do passado nas estantes do presente.

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