São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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O nome anônimo

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A abolição do privilégio educacional, por meio da venda de produtos culturais, não abre para as massas esferas das quais foram anteriormente excluídas (...); eles contribuem, ao contrário, para a decadência da educação e o progresso da barbárie."
Adorno

Psicanálise ao revés, a indústria cultural regressiva é "manipulação racional do irracional." Seus procedimentos: os da mídia. Esta constitui um universo à sua imagem e semelhança, como conteúdo único da consciência e única realidade. O mundo "é apenas ocasião para seu delírio".
Adorno não hesita em denominar suas práticas de patológicas: "Já que o paranóico só percebe o mundo exterior na medida em que corresponde a seus fins cegos, é capaz de repelir sempre e somente o seu próprio eu alienado à mania abstrata (...). A disciplina do sempre igual torna-se o substituto da onipotência. É como se a serpente que disse aos primeiros homens para se tornarem iguais a Deus tivesse mantido sua promessa no paranóico. (...) Parece não ter necessidade de nenhum ser vivo e no entanto exige que todos o sirvam (1). O pensamento restringe-se ao que é veiculado pela mídia: "O que não estiver na televisão não está no mundo".
Crise da educação e indústria cultural atestam, ainda, a crise de sua transmissão. A mídia concorre para a transformação progressiva do ensino, a fim de adaptá-lo às exigências do mercado e do desenvolvimento técnico. Face a isto, a mídia autoconcebe-se como deselitizadora da cultura, arquivando a educação humanista.
Esta teve sua primeira formulação moderna no século 15 florentino. Em sua obra "Della Famiglia", Alberti trata, a um só tempo, da descoberta da infância e de uma nova concepção da autoridade. O bom pai corresponde ao "buon governo".
Assim como o pai prefere dar conselhos e não ordens, o Príncipe deseja despertar o amor e não o medo. A educação era entendida como o fundamento da civilidade: tão somente a criança pode ser "formada", não existindo, pois, "educação política". O mundo dos negócios humanos é o dos adultos -cujo caráter já está realizado. A educação humanista respondia a uma determinada interpretação do homem e da cidade. Antes de perguntar o que ensinar e como fazê-lo, procurava saber que tipo de caráter se deveria desenvolver. Reflexão e autonomia constituíam-se em diálogo com a tradição e os ensinamentos, então reinterpretados, dos clássicos. Clássico: pensamento datado e não datado, que orientava os homens como um fio entre as gerações.
Sua versão iluminista encontra-se na filosofia de Adorno, para quem importa menos discutir o que é educar, ou como ensinar, e mais "que tipo de homem se procura formar com a educação": "Parece-me urgente incluir na discussão sobre o que é a educação, o 'para que' é a educação, ou 'para onde' ela deve conduzir" (2).
Sob os auspícios da mídia, aprender foi decretado fastidioso, e o esforço intelectual proscrito. Que se pense na leitura -atenta e concentrada-, substituída pelo espontaneísmo próprio à mídia e à indústria cultural. Se a televisão utilizava um vocabulário de "no máximo 300 palavras", o "Decálogo do Jornalista" prevê um leitor com capacidade intelectual "de dez anos".
Tais procedimentos visam transmissões que devem ser lidas, vistas e imediatamente compreeendidas por todos, segundo o pressuposto de que "a cultura autêntica seria inacessível ao grande público" (3). Indivíduos assim mobilizados, sentem-se instruídos quando capazes de opinar acerca dos assuntos do momento. Submetidos a uma servidão que se ignora a si mesma, o homem torna-se "lacaio do instante", "escravo da manchete do dia". Reduzido à condição de consumidor, aceita, sem resistência, a padronização da cultura.
A mídia não só prescinde da leitura, mas a torna "démodée". Se a leitura dinâmica, rápida e por saltos convém a um cartaz publicitário, é inadequada a escritos literários e científicos. Não obstante, sob aquela influência, a educação foi-se impregnando com a demagogia da facilidade -com o que a indústria cultural banaliza tanto a formação dita superior quanto a de resistência, produzindo, segundo Adorno, uma "barbárie estilizada".
O filósofo critica a indústria cultural não por ser democrática, mas por não o ser: "A luta contra a cultura de massa só pode ser levada adiante se mostrada a conexão sobre a cultura massificada e a persistência da desigualdade social" (4). A educação retorna à condição do segredo, pois a mídia transmite uma cultura agramatical, desortográfica e iletrada; contorce reflexão em entretenimento, pesquisa em produção -dado o imperativo primeiro e último do mercado consumidor. Se, na perspectiva humanista, as disciplinas são formadoras, na "cultura de massa elas são performáticas".
Crise da educação é crise da vida política. Assim como o cidadão se converte em empresário, também a noção de direito e de lei dissolvem-se em competição e sucesso. Quanto ao mestre, este perde a razão de seus fins.
Derrotado o ideal humanista de educação -o do "homem cultivado", o "honnête homme" virtuoso-, atrofia-se o espaço público. A sociedade encaminha-se para a dessocialização, com o desaparecimento das dimensões da Lei, na qual a sociedade se dá a ver e pela qual se auto-reconhece. À perda continuada de direitos, acrescenta-se a do significado do próprio nome. Mercadorias "personalizadas" passam a trazer a "assinatura" de seu produtor.
O primeiro produzia uma riqueza de objetos não padronizados, que sempre surpreendem pelas novidades que oferecem: "Os mais simples pratos de faiança, anotou Ernst Bloch, "diferem-se uns dos outros quando seus lugares respectivos de fabricação se separaram um do outro por cinco horas de caminhada (...). O que diferencia todos estes objetos é a localidade, a tradição; mas o elo excepcional que os une é a mesma execução cuidadosa, o conjunto minucioso das peças que o constituem, é uma cultura sedimentada e que lentamente chegou à maturidade" (5). Aos objetos em série, ao contrário, "não é permitido envelhecer, mas apenas deteriorar-se ao longo dos anos".
Difere, também, o trabalho industrial da atividade do artista. "Perverso sem perversão", "neurótico sem sintoma", conservou em si, no dizer de Freud, intacta e nova a parte sonhada na infância, em vez de simplesmente repetir -como o perverso-, ou imitar -como o neurótico-, os prazeres que em outra época experimentou. O artista não se aprisiona no passado de criança, mas o prolonga e atualiza constantemente.
O trabalho artístico aproxima-se, por outro lado, do luto: há sempre ausências a consolar. Sublimando a dor, o sofrimento produz beleza e transcendência (6). O artista, pode-se dizer, "se reconhece a si mesmo num mundo que ele criou". Também significativa é a história de sua transmissão: a Shakespeare foi preciso conceber personagens como Hamlet, Otelo, Iago para tornar-se autor.
Autor sem obra, o trabalhador moderno não realiza "uma livre atividade física e intelectual", pois "martiriza seu corpo e arruína seu espírito". Maneira marxista de revelar que o trabalho e seus produtos não pertencem ao trabalhador nem a seu ser. Alienação: fenômeno econômico e existencial engendrado pelas necessidades exclusivas do Capital. Este é vampiro, Moloch, Juggernaut, que se alimentam do sangue; e o homem, submetido à lei da acumulação e do lucro, fica reduzido "à condição de sombras que perderam seus próprios corpos" (7). "O animismo", reflete Adorno, "animou o inanimado; o industrialismo retificou a alma" (8). Trabalho desespiritualizado é alheio, hostil e fatal.
Figura moderna da expropriação, a do Nome. Inscrito em produtos industriais, manifesta uma biografia perversa: não a do trabalhador, mas a do inorgânico. "Trabalho morto", a mercadoria confisca o Nome do produtor, que se perde na livre-circulação dos mercados transnacionais. Perda do nome é despossessão de si. Designação aleatória do nascimento, ele convertia-se, ao longo da vida, em patrimônio personalíssimo, o arbitrário tornava-se necessário. Destituído agora de significado metafísico, o nome moderno é anônimo. É simples "organizador do fetichismo".
A sociedade inteiramente administrada ("verwaltete Gesellschaft") na produção e na cultura é masoquista. A vítima identifica-se com o agressor, "pois a cultura de massa", escreve Adorno, "é o fenômeno necessário da produção todo-poderosa. O uso afetivo do valor de troca não representa nenhuma transubstanciação mística. Ele corresponde ao comportamento do prisioneiro que ama sua cela, porque nada mais lhe é dado amar" (9).

NOTAS
1. Theodor Adorno e Max Horkheimer, "Dialética do Esclarecimento" (Zahar)
2. Adorno, "Educação Para Quê?, in "Educação e Emancipação" (Paz e Terra)
3. Adorno, "Minima Moralia" (Ática)
4. Adorno, "Televisão, Consciência e Indústria Cultural, in "Comunicação e Industrial Cultural", org. Gabriel Cohn (Companhia Editora Nacional)
5. Ernst Bloch, "Le Principe Espérance" (Gallimard)
6. Freud, "Essais de Psychanalyse Appliquée" (Gallimard)
7. Marx, "O Capital" (Fondo de Cultura Econômica)
8. Adorno e Horkheimer, "Dialética do Esclarecimento"
9. Adorno, "Dissonâncias" (Einaudi)

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