São Paulo, quinta-feira, 23 de novembro de 1995
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Neopatrimonialismo e a fusão de bancos

MODESTO CARVALHOSA

O Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), maldosamente batizado pelo populacho de "programa pró-garfo", além de trazer enormes e insuspeitados benefícios patrimoniais a determinados bancos, projeta uma luz também insuspeitada sobre a verdadeira feição do Estado brasileiro nos tempos que correm.
Muito se falou inicialmente em um Estado neoliberal, inspirado nas forças do mercado, capaz de conduzir ao resgate definitivo de nossas deficiências socioeconômicas, culturais e científicas.
Nesse sentido alguns politicólogos oficiais outorgam àquela difusa entidade mercadológica poderes supremos na condução histórica do país. É o que se pode ver no Programa de Reforma dos Aparelhos do Estado (versão de 9/8/95), que circula nos restritos e fechados meandros do governo: "É necessário reconstruir o Estado de forma que ele possa exercer suas funções, não apenas de garantidor da propriedade e dos contratos, mas também seu papel de complementar (sic) o mercado na coordenação da economia e na promoção de uma maior igualdade social".
A condução efetiva da política governamental, no entanto, contraria essa proposta de submissão do poder público às forças econômicas livremente exercitadas. De fato, nunca houve tanta intervenção no mercado quanto a que se faz, através do controle do crédito e do volume de moeda e dos contratos, levando o país a estados permanentes de recessão, conforme decidam os olímpicos laboratórios tecnocráticos de Brasília.
Percebendo a incoerência do seu próprio discurso e ainda a impopularidade flagrante da ideologia neoliberal, proclamou-se o governo neo-social. A autodefinição não se consolidou, no entanto, junto à opinião pública, pela ausência absoluta de prioridades nesse campo. O governo está claramente voltado para o equilíbrio de suas próprias contas (via reforma tributária) e para a estabilidade monetária, via juros altíssimos, levando à retração de investimentos e ao desemprego.
Não sendo neoliberal nem neo-social, como se poderia identificar a conduta político-administrativa do Estado brasileiro no momento? Configura-se ele, a nosso ver, como um Estado neopatrimonialista. Patrimonialista na medida em que não há uma nítida distinção entre a coisa pública e os interesses privados. Neopatrimonialista porque não respeita as leis e não garante os direitos inerentes à propriedade e aos contratos.
Neopatrimonialista porque a confusão entre a "res" pública e a "res" privada se faz de forma sofisticada e tecnocrática. Diferentemente da direita apropriação e espoliação dos recursos públicos e privados pelos antigos potentados, hoje um verdadeiro exército de especialistas governamentais elabora intrincados instrumentos de repasse dos benefícios para mãos privadas, revestindo-os de tal tecnicalidade que dá aparência de que seus métodos não são casuísticos e visam a felicidade geral do povo.
O neopatrimonialista teme a opinião pública. Por exemplo: lança o governo inicialmente uma MP cruamente reveladora da intenção de proteger alguns grupos para, em seguida, procurar convencer que não é tanto assim por meio de diárias modificações no edito inicial, em jogo de cena com lideranças do Congresso.
Neopatrimonialista porque, ao não respeitar os direitos dos milhares de investidores que ingenuamente investiram no mercado de ações, "suspende" a eficácia das leis por meio de MPs. Diferentemente, portanto, do patrimonialismo clássico que simplesmente confiscava os bens dos súditos, "in natura". Tal diferença, evidentemente, não é tanta assim. As críticas à espoliação de direitos dos acionistas minoritários dos bancos levaram a um endurecimento drástico dessa mesma espoliação, conforme consta da retificação da MP 1.179, publicada no D.O.U. de 6/11/95.
Neopatrimonialista porque a sua fonte não é mais a vontade do príncipe, mas de grandes grupos que financiam as milionárias campanhas eleitorais. Em consequência, há uma nítida divisão de benefícios. Os políticos ganham as eleições utilizando recursos de alguns grupos privados. E uns poucos bancos se beneficiam dos cofres públicos para corrigir erros de gestão de colegas, a juros de 2% ao ano e garantias em moeda podre.
Neopatrimonialista porque se diferencia da simples corrupção. Esta é definida geralmente como a apropriação privada dos recursos públicos. Nesse ponto até se identificam uma e outra. A diferença, no entanto, está em que no neopatrimonialismo a apropriação é institucional, por meio de MPs, regulamentos, portarias e circulares.
Essas medidas, embora firam frontalmente a Constituição, a começar pelos princípios da impessoalidade, moralidade e legalidade (art. 37), têm como beneficiários terceiros, ou seja, determinados bancos. No caso da corrupção pura e simples, ocorre que a apropriação é feita às escondidas, tendo como pressuposto o dolo, e visa transferir tais recursos diretamente para as mãos daqueles que os operam.
O neopatrimonialismo, ademais, na consecução de sua dinâmica, que leva a transferir direitos e recursos do povo para o benefício de alguns, tem a capacidade sacramental que nunca a corrupção alcançaria. Tais apropriações seguem os rituais e procedimentos próprios do Poder Legislativo e são por este aprovados como se fossem leis.

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