São Paulo, quinta-feira, 23 de novembro de 1995
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Adeus às massas

OTAVIO FRIAS FILHO

Enfim, uma polêmica. Na mesma cerimônia em que condecorou ACM com uma certa Ordem do Mérito Cultural, provavelmente por conta de seu trabalho pela conservação do nosso passado colonial, FHC divulgou a teoria de que a cultura de massas acabou. A tecnologia e o livre-mercado produzem públicos cada vez mais específicos; tanto o operário como o criador voltam, assim, a ser artesãos.
Essa teoria é o corolário, em termos culturais, do programa econômico de FHC. Não é por acaso que o presidente-sociólogo, num lance de fordismo renitente, foi buscar seu exemplo no mundo da fábrica, onde a última mistificação é fazer o operário assinar o chassi do carro, mais ou menos como nessas cartas "personalizadas" que os bancos mandam para os clientes.
A fragmentação do consumo em guetos e dialetos reproduz a cultura de massas em "outro patamar", para usar o jargão presidencial, acentuando, porém, os seus traços característicos. A extrema variedade de escolhas é exatamente o que nivela todas elas, tornando cada experiência cultural igualmente fortuita, indiferenciável e inautêntica.
Ao mesmo tempo, para que possam conviver no mercado, as opções têm de ser simultâneas, o que significa desligá-las da sua origem histórica. Em outras palavras, elas passam a se apresentar por força de apelos externos, em vez de emergir espontaneamente da vivência das comunidades e das pessoas. Uma situação assim é antes paraíso, em lugar de superação, da cultura de massas.
O fato de que os netos de José Arthur Giannotti, conforme o filósofo nos relatou em artigo, fazem neste momento seu "aprendizado em Orlando", ao passo que o empregado do autor cobiça uma jaqueta Reebok, não parece argumento em favor da tese de que estamos livres da cultura de massas. Ao contrário, o exemplo mostra o que há de escandalosamente uniforme sob as ilusões de diversidade.
Mas não é o caso de sustentar ou rebater o ponto de vista de FHC no assunto; isso já foi muito bem realizado pelo Mais! de domingo passado, que publicou, entre outros textos valiosos, o de Giannotti. De certa forma, que interessam os argumentos? Eles são pouco mais do que pretextos que nos permitem endossar nossa própria opinião, nossa atitude, em última análise nosso temperamento.
De modo igualmente fundamentado e persuasivo, dois polemistas podem defender que a informática, por exemplo, liberta e tiraniza, abre possibilidades incomensuráveis e encerra o homem na pior das solidões, torna cada um responsável por seu destino e mero fantoche manipulado por forças impessoais. Argumentos nunca faltam, nem mesmo a posteriori.
Não nos damos conta de que a catástrofe nuclear, evitada na realidade, ideologicamente já ocorreu. Toda a nossa estrutura de idéias, erguida sobre um núcleo de humanismo no qual acreditávamos cegamente, virou pó. Bastaria isso para nos fazer, se não pessimistas (seria o ideal), pelo menos profundamente céticos. Deixemos aos governos a tarefa de nos envenenar com doses crescentes de entusiasmo.

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