São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 1995
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Stella une pintura, escultura e charutos

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fumar, dizia Oscar Wilde, é a única coisa que distingue o homem dos animais. Em todas as culturas onde o fumo não foi coibido, seja por motivos religiosos ou ideológicos, homens e mulheres fumam. Mesmo com toda a legislação antifumo vigente hoje no mundo e com o acesso generalizado à informação médica, cerca de um bilhão de pessoas continuam fumando. E o que elas fumam é uma das coisas que as distinguem entre si.
Há, por exemplo, o charuto, homenageado agora, em grande estilo, nas esculturas e pinturas de Frank Stella. Um dos maiores artistas vivos, Stella abre este mês uma exposição na galeria Leo Castelli, em Nova York, com suas características telas tridimensionais.
Outra exposição, com peças em metal, vai inaugurar a galeria Gagosian em Beverley Hills. Ainda este ano, está programada uma retrospectiva dos seus quase 40 anos de carreira, no museu Nacional Rainha Sofia, de Madri, que segue depois para Munique. Como se não fosse o bastante, Stella está preparando também uma série de murais para um arranha-céu de 55 andares em Seul.
Muitos desses trabalhos têm como inspiração inicial a fumaça do charuto. Fumante desde 1965, quando recebeu uma caixa de charutos do finado escultor David Smith, Stella vêm há algum tempo trabalhando especificamente com o charuto como matéria de invenção. O último número da revista "Cigar Aficionado", que se acha sem muita dificuldade nas bancas, traz uma reportagem detalhada sobre o seu processo de trabalho.
Stella primeiro sopra fumaça de charuto dentro de um cubo forrado de veludo preto. Seis câmeras tiram fotografias da fumaça, de ângulos distintos. Um computador transforma as fotos em imagens de duas e três dimensões. A partir dessas, são feitas outras: algumas em litogravura, outras pelos técnicos da casa da moeda da Suécia (as formas da fumaça se assemelham às espirais das cédulas de dinheiro). A partir do resultado, Stella começa a colorir e recortar detalhes, que servem então de base para esculturas e quadros.
Que um dos maiores artistas vivos dedique tamanho esforço e talento para homenagear o charuto pode parecer um exagero. Mas isso é opinião de não-fumante. Para quem sabe melhor, é apenas justo, depois de tantos anos de companhia e amizade.
Mas que encanto especial tem esses tubos enrolados de erva? A palavra "charuto" vem de uma raiz maia, "sic", que quer dizer simplesmente "tabaco". O "Dicionário Aurélio" o define como "rolo de folhas secas de fumo, preparado para fumar-se". Mas isto é como explicar que a música é "a arte dos sons", para quem nunca ouviu Mozart ou Bach. Mais antigo dos instrumentos de tabagismo, o charuto é também o mais sofisticado, o mais variado, uma cultura em si.
Preconceitos vulgares reduzem o charuto a um símbolo fálico. Mas um charuto, como disse Freud, às vezes é só um charuto. Também não se trata apenas de um cigarro mais comprido, mais gordo e mais forte. As diferenças entre charuto e cigarro não poderiam ser maiores.
Cigarros são idênticos uns aos outros; cada charuto, feito à mão, com uma folha ímpar, é uma experiência nova. Cigarros são para ser fumados em grande número, várias vezes ao longo das horas; um charuto ou dois por dia já é boa média. O cigarro permite pensar noutra coisa, fazer um trabalho, conversar; o charuto é a coisa em si. Mais importante que tudo é o tempo do charuto. Num certo sentido, o charuto é isto: o tempo de fumar o charuto, que se conquista às circunstâncias e a nós mesmos.
A história guarda uma lista enorme de cultuadores de Havanas. O charuto ganhou a Segunda Guerra Mundial (Churchill) e a Revolução Cubana (Fidel); escreveu a "Interpretação dos Sonhos", dirigiu o maior filme do século ("Cidadão Kane"), e criou as melhores comédias (Groucho Marx), além de alguns dos maiores poemas (T. S. Eliot e, antes dele, Mallarmé); compôs "Madame Butterfly" e "Tosca" (Puccini) e inventou a música erudita do Brasil (Villa-Lobos); e continua revigorando o pensamento e a arte nos lábios de criadores como o romancista cubano Guillermo Cabrera Infante (autor do melhor livro sobre charutos, "Holy Smoke', ele mora em Londres e não fuma cubanos, em protesto contra Fidel Castro), o escritor roteirista Paul Auster (de "Cortina de Fumaça"), ou, como agora se vê, o pintor e escultor americano Frank Stella.
Nem o oportunismo político, nem a longevidade como ideal de vida podem resistir, no médio prazo, aos encantos e gratificações do fumo. A demonização do tabagismo é um fenômeno de época: repete-se ciclicamente ao sabor dos ventos da história. Sobre esse assunto, foi Richard Klein quem escreveu o estudo mais -se se pode dizer- inspirador: "Cigarettes are Sublime" (Duke University Press, 1993).
Há um conto famoso do escritor simbolista Pierre Louys, intitulado "Uma Volúpia Nova. A deusa Calisto visita um dândi em seu apartamento parisiense. Prova a ele que não há nada de novo na modernidade, nada que os gregos já não conhecessem. No final, o narrador aceita a derrota, e oferece a ela um cigarro. E é esta a única invenção que os antigos não conheciam, a nossa única resposta à sabedoria do passado. (Ufanisticamente pode-se registrar a "Ode ao Charuto de Bernardo Guimarães, de 1857, que já porta essa idéia.)
Calisto, como diz Richard Klein, é também uma criatura profética: "não o dândi, mas a mulher dona de seu prazer será o futuro dos cigarros no século 20. O que será o futuro do charuto no novo milênio não é difícil de prever: mulheres e homens, vamos continuar fumando. Em tempos de "saúdismo", cada um, como diz Frank Stella, fuma "o que for possível, sempre que possível. Mas outros tempos virão. Se Cabrera Infante tiver a última palavra -e as coisas parecem ir neste caminho- teremos até, quem sabe, em breve, havanas livres para todos.

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