São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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A tradição da tolerância

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nada mais atual do que debater um tema que já parecia superado, o das relações entre a religião e a política. A modernidade parecia, definitivamente, leiga, com a fé se tornando assunto privado, íntimo. Mas um terrorista mata o premiê de Israel, um "entertainer" chuta uma imagem católica, a Igreja controla o ensino de religião nas escolas públicas: onde foi parar a tolerância, o espírito republicano?
O século, vê-se, exige que se volte a tratar das relações entre fé e poder. E para isso a antologia de Lutero e Calvino traduzida pela Martins Fontes é muito útil, até porque remete a dois autores que nosso país, de formação católica, conhece pouco.
A Reforma rompeu a unidade da Europa cristã. A rigor, é difícil falar em "Estados" no sentido moderno, independentes, antes dela. Aliás, a própria palavra "Estado" só começa a ter lugar por essa época, depois do "Príncipe", de Maquiavel.
A Idade Média não conhecia Estados como os nossos. Tem mais cabimento pensar, naquele tempo, em uma "communitas christiana", um espaço político cristão, que cobriria praticamente toda a Europa cristã, excetuados os países de religião ortodoxa.
A figura emblemática dessa suposta unidade era o imperador germânico, cuja supremacia sobre a Alemanha era, na verdade, bastante formal. Mas, bem ou mal, ele simbolizava uma unidade -que se perde com a Reforma. Não é por acaso que abraçam a nova religião aqueles reis desejosos de garantir sua independência do papa e do imperador.
Martinho Lutero não quer discutir política quando prega, em 1519, na catedral de Wittenberg, seu desafio ao papado. Só o fará daí a uns anos, diante da repressão católica. Embora evite um ataque frontal ao imperador Carlos 5º, procura limitar seus poderes em face da religião.
Lutero defende a obediência ao poder temporal dos príncipes. Mas também exige espaço para a religião que considera verdadeira. Seu texto é de 1523, dois anos antes da revolução camponesa de Thomas Muenzer, que invocará a Reforma para desafiar os poderosos deste mundo. O reformador, que ainda não se assustou com os sem-terra alemães, não hesita em usar palavras duras com os príncipes.
E isso é, sem dúvida, o mais saboroso nesse tratado de Lutero. Faz trocadilhos, piadas, ironia. Várias vezes afirma que é raríssimo o príncipe justo, bom e fiel a Deus. (Nem por isso, acrescenta, será lícito desobedecer ao mau governante).
Também condena a repressão a heresias. Sem dúvida sua defesa da tolerância é parcial, porque nesse momento os luteranos são perseguidos e não perseguidores; as coisas poderão mudar depois. Mas, mesmo assim, as páginas de Lutero contra as tentativas de controle da mente são belas e inspiradoras.
O curioso é que Calvino, mais simpático à república do que o monarquista Lutero, em seus textos aqui reunidos (e que datam de 1536 em diante) defenda idéias mais afastadas do leitor atual. Certamente a diferença está em que Lutero quer um lugar para sua fé no interior de uma política já existente, na qual os reis são católicos, enquanto Calvino tem em mente Genebra, isto é, uma pequena república em que os homens de sua religião assumirão o poder.
Mesmo assim, causa estranheza que Calvino afirme que os "magistrados" (ou governantes) são delegados de Deus na Terra. É esta uma das primeiras fórmulas do direito divino dos reis, doutrina que depois será desenvolvida por Jaime 1º da Inglaterra. E o fundador do calvinismo não quer saber de tolerância religiosa: cabe ao Estado, brada ele, apoiar a verdadeira religião, a sua.
Que balanço fazer destes textos, hoje? São, inegavelmente, remotos, e seu maior interesse -ainda mais se tratando de uma edição séria, com introdução e notas primorosas, traduzida da versão inglesa da Cambridge University Press- é para o estudioso do pensamento político. Mas há um alcance maior, que vale para quem deseja pensar as relações entre a política e a religião.
E aqui os textos funcionam quase como uma advertência. Esses ensaios de Lutero e Calvino se sustentam, acima de tudo, na autoridade da revelação, isto é, na palavra de Deus -ao contrário das duas maiores obras de filosofia política suas contemporâneas, a "Utopia", de Tomás Morus, e o "Príncipe", de Maquiavel, que se baseiam parte na experiência, parte na razão.
Ora, a política moderna foi se desenvolvendo na mesma proporção em que a Bíblia -ou qualquer livro revelado- ia se mostrando cada vez mais insuficiente para servir-lhe de base. A democracia moderna é uma construção leiga, que só por isso pode aceitar a diferença e admitir liberdade, como as de expressão, de pensamento, de voto.
Já as religiões dão ao homem algo mais forte: a fé, a convicção de estar em contato com Deus, com o sobrenatural, com a verdade. Perto disso, a democracia leiga apenas tateia, incapaz de tamanha segurança. Mas, por isso mesmo, incapaz de tamanha arrogância, mais tolerante com a diferença. E talvez seja este o valor mais importante, na política ou simplesmente no convívio com o outro, de nossos dias.

A OBRA
Sobre a Autoridade Secular, de Lutero e Calvino.
Tradução de Hélio Leite de Barros e Carlos Eduardo Matos. 164 págs. Editora Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, São Paulo, CEP 01325-002, tel. 011/239-3677). R$ 15,40

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