São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Pulsões trágicas

Vanessa Redgrave devolve humanidade à heroína

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

O notável historiador da religião Mircea Eliade defendia que a sexualidade tem uma função cosmológica: o ato sexual seria um meio de conhecimento. Os aspectos mais profundos da subjetividade humana estão assim associados à experiência orgásmica, sensual e instintiva.
Em "Antônio e Cleópatra", interpretada e dirigida por Vanessa Redgrave, que foi apresentada até sexta-feira passada no palco do Sesc Anchieta em São Paulo, a sexualidade poderia assumir facilmente um aspecto hierofânico, religioso.
Afinal, dois personagens de dimensões sobre-humanas se apaixonam e desencadeiam uma tragédia mortal. São espécies de deuses de carne e osso que se aproximam pela força do sexo, do conhecimento, portanto. Mais do que isso, são duas culturas que se atraem e se atritam. Entre ambas está Marco Antônio, ideal do homem romano, encantado pela rainha egípcia.
As pulsões eróticas estão lá, mas apenas como pano de fundo. A peça enfatiza, bem ao gosto dos tempos, as angústias políticas do momento. As cenas se passam em Roma e no Egito, é certo, mas os atores estão trajados com indumentárias da época elizabetana e usam armas de fogo.
Redgrave, a diretora, quer falar da "nova ordem mundial", da guerra da Bósnia, do racismo entranhado na mentalidade européia, da eternização das injustiças, da miséria. Numa das paredes do palco, uma pichação conclama em português: "Vote pelo pão".
Redgrave, a atriz, faz uma Cleópatra branca de cabelos vermelhos, que contracena com um Marco Antônio negro (David Harewood), adversário aqui, aliado ali, de um Otávio César (Howard Saddler) também negro. Cores trocadas e os mesmos velhos conflitos.
O distanciamento brechtiano (uma filha de Bertolt Brecht, Barbara Brecht-Schall e seu marido integram o "staff" multinacional do espetáculo) procura realçar as múltiplas relações com o momento.
O teatro constitui o tema central da peça. Cleópatra, como nos lembra Northrop Frye, é uma mulher que tem uma identidade de atriz. Fiéis a essa essência em última instância, a rainha e os líderes romanos estabelecem e rompem alianças, regulam suas performances segundo impulsos antagônicos, ora subordinados ao cálculo político, ora a fidelidades nacionais ou ao apelo dos afetos pessoais.
Nesse ambiente conflagrado, a sensação apaziguadora proporcionada pelas alianças jamais vigora por uma cena inteira, pois a solução de um conflito leva a outro, sempre mais destruidor e sanguinário.
A atuação de Vanessa Redgrave faz jus ao mito em torno de seu nome. Ela constrói uma Cleópatra em tudo admirável, frágil e ativa, poderosa e dividida. Nos múltiplos planos em que seu personagem se desdobra, não há espaço para o clichê que associa Cleópatra a uma ardilosa messalina.
A atriz imprime modulações tão sutis e variadas ao seu desempenho que extrai dele sem nenhum esforço aparente uma dimensão transcendente pela sua humanidade. As cenas de seu desespero no último ato, após a morte de Marco Antônio e antes de seu suicídio, emocionam justamente porque desprovidas de qualquer afetação grandiloquente ou "clássica".
Redgrave desnuda a Cleópatra ao mesmo tempo ridiculamente humana e sublime, rainha-deusa-atriz empenhada em um último e maior gesto para preservar e projetar sua grande criação, a própria personagem, condenada ao pior que lhe poderia ocorrer: deixar o centro do palco para dar lugar ao triunfante Otávio César.
Pode parecer apenas um capricho banal, não importa, mas lança luz sobre fraquezas que regulam o mundo e a humanidade, como nas palavras de Menecrates: "Nós, ignorantes de nós mesmos, com frequência suplicamos nosso próprio infortúnio, a que os sábios poderes dizem não para nosso bem; assim, lucramos ao desperdiçarmos nossas preces".

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