São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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ONU é impotente em conflitos, diz estudioso

VINICIUS TORRES FREIRE
DE PARIS

A ONU é impotente para intervir em conflitos como o da ex-Iugoslávia, o acordo sobre a Bósnia é uma paz ruim e será cada vez mais difícil distinguir guerra de terrorismo.
Essas são algumas das opiniões do filósofo e historiador Pierre Hassner, 62, 40 deles dedicados ao estudo de relações internacionais. Hassner é diretor do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais da Fundação Nacional de Ciência Política da França, o centro mais respeitado de análise política internacional do país.
O pesquisador concedia esta entrevista à Folha na terça-feira, quando era anunciado o acordo de paz entre bósnios, sérvios e croatas. Hassner falou do papel dos EUA e da ONU na regulação dos conflitos mundiais e sobre o novo caráter da guerra.
Depois de divulgado o acordo, Hassner confirmou seu ceticismo em relação ao futuro da paz na ex-Iugoslávia. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha - O que o sr. acha do resultado das negociações sobre a Bósnia? É uma paz estável?
Pierre Hassner - Não posso dizer agora se a guerra vai continuar. Como eu já havia dito antes, o acordo é um mau acordo. É fundado sobre divisões, porque ninguém vai ficar muito satisfeito, tudo vai depender do que vai acontecer daqui em diante, e porque ninguém sabe como a paz vai ser mantida, se o Congresso americano vai concordar tão facilmente em enviar tropas para fazer com que o acordo seja cumprido. E a Bósnia será dividida, a "limpeza étnica" dificilmente vai voltar atrás, há cláusulas perigosas, como a que permite relações de partes da Bósnia com seus vizinhos (croatas e sérvios) etc.
Esta paz é ruim, uma meia paz, uma trégua. Por enquanto, é apenas uma espécie de cessar-fogo mais longo. Como eu disse, é uma "paz libanesa".
Folha - O presidente francês, Jacques Chirac, durante meses pediu uma intervenção na Bósnia, mas isso só ocorreu quando os EUA quiseram. O sr. concorda com isso?
Hassner - Sim, na Conferência de Londres os ocidentais deram um ultimato, ameaçaram bombardeios etc, mas a intervenção realmente só se desenhou quando os EUA tomaram a decisão para si. E eles fizeram mais coisas em um mês que os europeus e a ONU em três anos. Mas um dos passos decisivos ocorreu quando os croatas, retomando a Krajina, mostraram que os sérvios podiam ser batidos em batalha, provavelmente encorajados pelos EUA.
Folha - A comunidade internacional e suas instituições não funcionam?
Hassner - A Europa e a ONU sairão perdendo neste conflito. A intervenção da ONU, dos capacetes azuis, de Exércitos que chegaram a virar reféns, isso nós vimos que não funciona. No caso da Europa, e quando a Europa interveio, chegou a se dizer que era a "hora da Europa", ficou claro que os países que a compõem não têm unidade de vontade.
Nada deu certo. Chirac falava em mandar ele mesmo soldados para Gorazde, mas nem sei se isso era um álibi que ele estava inventando. De qualquer modo, ele não poderia intervir, porque os americanos não queriam dar apoio logístico, os helicópteros de transporte pesado de tropas etc. A Europa e a ONU eram impotentes.
O certo é que a intervenção tem de partir de uma verdadeira organização militar ou de uma potência, quer dizer, a Otan e os EUA. O que é preciso é que uma potência tome conta das coisas e que a ONU, tudo o que ela puder fazer, como no caso da Coréia e do Kuait, legitime uma intervenção que é feita por uma grande potência ou por uma coalizão delas. Mas a ONU ela mesma não tem a capacidade de intervir num conflito quente, numa guerra aberta.
Folha - Quer dizer, a ONU não serve para nada nesses casos?
Hassner - Acho que o papel da ONU ou da União Européia pode ser desempenhado antes ou depois. Quer dizer, fazer coisas como diplomacia preventiva, colocar as pessoas para conversar etc. Pode intervir também depois, como no caso de reconstrução depois de uma guerra, para garantir um acordo. Mas, quando as pessoas combatem, ela não serve para nada. Nem para defender gente que não tem como se defender. Ela não quer tomar parte no conflito.
Folha - Só quem pode algo então são os EUA e a possibilidade de regulação por um direito internacional...
Hassner - Ah, o direito internacional..., você sabe que não há direito internacional ou autoridades que tenham capacidade de fazê-lo. Voltamos ao problema da ONU. O próprio Boutros Boutros-Ghali (secretário-geral da ONU) diz: "Eu levo os documentos de lá para cá, faço os levantamentos de situação, mostro os horrores que foram cometidos em Ruanda e, se há alguma potência interessada, tudo bem, de outra maneira...".
Folha - "Aqui estão as guerras e os massacres, se vocês quiserem fazer algo..." É isso?
Hassner - Exatamente. Frequentemente Boutros-Ghali se apresenta como um intermediário, um contato que mostra como está a situação e diz: "Não sou eu que tenho o dinheiro, não sou eu que tenho as tropas, são os Estados que decidem, é o Conselho de Segurança que decide".
Mas, depois, quando se decidiu fazer alguma coisa, por uma intervenção, ele que ter a autoridade operacional, o que nos levou a toda essa paralisia na Bósnia. Então, para dar um tiro de canhão é preciso que um general peça autorização ao chefe da força da ONU, que pediria autorização à força civil, no caso o sr. Yasushi Akashi, que se reporta à ONU em Nova York e assim por diante. A ONU não foi feita para combater, para não correr o risco de ser vencida. Então é preciso que ela delegue essa tarefa a alguém que possa fazê-lo.
Quer dizer, nós chegamos a um ponto central, na minha opinião. Ninguém quer muito combater, e isso também vale para os EUA. Os americanos, afinal, foram à Bósnia, mas com bombardeios aéreos, sem riscos maiores, para sair rapidamente, para que o Congresso aceite essas intervenções.
Folha - É a guerra "sem mortos", "limpa" e "cirúrgica", como no Iraque.
Hassner - É isso, por causa da natureza das sociedades ocidentais. A dificuldade da intervenção se deve, acho, a três fatores. Há os defeitos das instituições, da ONU, a paralisia, a burocracia da ONU, os vetos no Conselho de Segurança. Há os interesses nacionais divergentes, no caso da Iugoslávia, os russos apoiavam os sérvios. Mas, em terceiro lugar, o aspecto que me parece mais importante, há a natureza das sociedades. De um lado, as sociedades ocidentais, que têm o dinheiro e a força militar, mas que são sociedades, digamos, burguesas.
Folha - É a distinção conceitual que o sr. costuma fazer entre sociedades burguesas e bárbaras em relação à guerra...
Hassner - Isso. As sociedades ocidentais, burguesas, não querem a guerra tradicional de conquista, por exemplo, mas também não querem fazer a guerra pelos direitos humanos, ou para manter a ordem em outros países. Nesses casos, fazem no máximo alguma coisa de simbólico ou humanitário, um bombardeio ou outro, mas sempre procurando evitar um outro Vietnã ou outra Argélia, no caso dos franceses.
Folha - Por que essas sociedades não querem intervir?
Hassner - Pela sua natureza. Veja esta história. Outro dia disse a um diplomata ocidental importante, com quem costumo conversar: "Sou pela intervenção na Bósnia, acho que posso apresentar bons argumentos em favor disso". Mas, apesar do meu temperamento bastante intervencionista, sei que há argumentos sérios contra a intervenção.
O diplomata importante me disse, veja a mentalidade: "Foi assim por causa da opinião pública. Nós, os diplomatas, preferiríamos que não se fizesse absolutamente nada, mas você compreende, temos a CNN, os horrores transmitidos pela TV, a opinião pública nos leva a fazer alguma coisa. Mas se se quisesse ser realmente eficaz, seria preciso correr riscos, o risco de ter muitas mortes. Mas então a opinião pública se voltaria contra nós. Então somos condenados a fazer algo, mas não muito".
O que eu não compreendo é isso, o que se fez durante três anos na Bósnia, intervir pela metade, se expondo ao ridículo, fazendo 60, 70 decisões do Conselho de Segurança, nunca cumpridas, ou com esses bombardeios simbólicos, o que mais me exasperou, nos casos de Bihac e Gorazde, ou um bombardeio sobre um aeroporto, feito depois que se avisou que haveria bombardeio, essas coisas. Ou não se faz nada ou se faz algo de eficaz.
Folha - Mas como se relacionar com a opinião pública?
Hassner - Fazer o que foi feito é eximir-se das responsabilidades do governo. Agradando assim a opinião pública se faz uma política tão simplista como má. Claro, como eu disse a ajuda humanitária salva vidas.
Mas tudo quase se reduz a golpes de mídia, alguns de bastante mau gosto, como no caso dos britânicos. Eles, os mais reticentes em intervir na Bósnia, criaram essa encenação da "pequena Irma" (uma criança ferida na guerra da Bósnia e tratada no Reino Unido), ou sei lá qual era o nome dela.
Folha - Enfim, como sair desse cenário, onde direito e comunidade internacionais não existem, há apenas "realpolitik" e lances de mídia?
Hassner - Comunidade internacional é igual a comunidade dos Estados, que é igual a ONU que é igual a Conselho de Segurança, que é igual aos membros permanentes do Conselho de Segurança, onde os EUA procuram convencer França e Reino Unido a segui-los e tentam impedir Rússia e China de vetarem as resoluções para ver se algo é feito. É isso que é a comunidade internacional. Mas é necessariamente negativo ou desprezível? É um concerto de potências como havia no século 19, como o concerto europeu, mas que pode tomar decisões.
Mas há também pequenas mudanças. Começa a surgir uma opinião pública internacional, uma autoridade internacional. Por exemplo, esse Tribunal de Justiça de Haia (o tribunal da ONU que julga crimes de guerra), que de certa maneira é uma farsa porque ele não pode prender Karadzic (Radovan Karadzic, líder dos sérvios da Bósnia), mas de qualquer modo ele desempenha um papel nas negociações, como ameaça. Há a comissão de Tadeusz Mazowiecki sobre os crimes de guerra na Iugoslávia, os mediadores internacionais, que fizeram um trabalho razoável. Mas sou a favor dos esforços para se criar uma autoridade internacional, uma força militar internacional.
Folha - As relações de força permanecem, mas quem detém esse poder? São ainda os Estados nacionais?
Hassner - As potências são cada vez menos potentes, por causa da sua política interior. Mas o que as potências perdem não é ganho pela comunidade internacional, pela ONU, pela União Européia, mas pela anarquia, outros atores, econômicos, por exemplo, como os especuladores dos mercados financeiros internacionais, as máfias internacionais.
Folha - Falamos dos burgueses. Mas quem são os bárbaros?
Hassner - Não são exatamente civilizações integralmente bárbaras. Falo de conflitos bárbaros, confusos, de fundo patriótico, místico, liderados por gângsteres, onde as vítimas são mais as populações civis que as tropas, onde não se sabe muito bem quem são as partes em conflito.
Folha - Haveria cada vez menos guerras clássicas então. O pesquisador espanhol Mariano Aguirre diz que há hoje cerca de 50 conflitos em todo o mundo, praticamente todos guerras civis. Ele cita a Argélia, por exemplo. Mas o que é hoje uma guerra? Os massacres de Ruanda foram uma guerra? A sucessão de atentados terroristas e combates esparsos entre guerrilha e governo na Argélia são uma guerra? Como poderia haver uma intervenção internacional nestes casos?
Hassner - São massacres sucessivos, sim. Acredito que haja hoje algo maior e mais difuso que a guerra tradicional, não inteiramente distinto de algo como o terrorismo. Há mais uma violência confusa do que guerra propriamente dita, não há mais guerra clássica, há esses "conflitos de baixa intensidade", as milícias, os bandos.
Folha - Mas, hoje, a Irmandade Muçulmana, grupo fundamentalista islâmico do Egito, começa uma ação que pode levar a uma situação como a argelina. O terrorismo deles já não seria guerra, uma "nova guerra"?
Hassner - Você tem razão, mas não podemos levar isso muito longe. É uma violência que se difunde porosamente. Há os conflitos de Los Angeles, há Sarajevo, mas acho que não se pode colocar tudo no mesmo plano. E ainda há guerras típicas, como a do Golfo.
Há mesmo gente que diga que não é o Ocidente que é o modelo da África, mas é a África que é o modelo do Ocidente, do qual o Ocidente vai se aproximar. As grandes megalópoles do mundo inteiro, segundo esses autores, estariam caminhando para isso.

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