São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Cultura e incentivos fiscais

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS; PAULO PÉLICO

O entretenimento desponta como a indústria de maior potencial para o próximo século
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e PAULO PÉLICO
Se é verdade que o incentivo fiscal trouxe benefícios para o Norte e Nordeste, conseguindo promover o crescimento, reintegrando essas áreas, haverá de servir também para resgatar outra região da nação brasileira que se encontra numa situação pior de abandono e estagnação. Estamos falando do imaginário brasileiro.
Território extremamente bem guardado por outros povos, entre nós ele nunca mereceu maior atenção. O resultado desse descaso é que essa zona se encontra atualmente sob absoluto controle externo.
Para ilustrar tal domínio, basta citar dois dados sintomáticos da nossa indústria cultural: na área fonográfica, todas as grandes gravadoras são multinacionais. São proprietárias das principais fábricas de prensagem de discos -CD e vinil. Controlam todo o mercado distribuidor e dominam os canais de divulgação numa inestimável posição de poder estratégico para eles e absoluta submissão mercadológica para nós.
As consequências disso são imprevisíveis e só o tempo nos dirá. No segmento audiovisual, o quadro é bem mais dramático. O filme estrangeiro ocupa algo próximo de 100% das telas brasileiras. Na televisão, onde sempre produzimos a maior parte de nossa programação, com o advento das TVs por assinatura -todas elas dominadas por imagens importadas- esse panorama está se alterando rapidamente, fazendo baixar a participação da produção brasileira. Com a popularização desses serviços essa situação poderá se refletir também na audiência, e aí estará caindo o último foco de resistência da nossa indústria cultural.
Mesmo deixando de lado as considerações político-ideológicas dessa iminente americanização do planeta, até porque contestável sua superioridade deontológica, e nos restringindo a aspectos puramente econômicos, não estamos fazendo bom negócio evitando enfrentar o problema. Estamos perdendo muito dinheiro.
Os EUA faturam US$ 40 bilhões anualmente com a exportação de imagens. Um terço, portanto, da nossa histórica dívida externa em apenas 12 meses. A título comparativo, o famoso "Parque dos Dinossauros", de Spielberg, rendeu sozinho quase US$ 1 bilhão, enquanto o filme brasileiro "A Grande Arte" não alcançou a módica cifra dos US$ 6 milhões.
Não foi por outra razão que a Europa, liderada pela França, partiu para o enfrentamento da questão nas já célebres negociações do Gatt no final de 1993. Em habilidosa e inteligente articulação, os intelectuais europeus impuseram uma "vietnamita" derrota aos americanos, que se viram obrigados a tolerar a adoção de medidas que contrariavam frontalmente os interesses comerciais de "Hollywood" naquele continente.
E a participação dos EUA no mercado europeu é de apenas 60% (apenas?) na maioria dos países, podendo chegar a 80% em algumas regiões. Nada comparado com o nosso caso, onde essa ocupação, como já foi dito, atinge quase a totalidade.
O entretenimento desponta como a indústria de maior potencial para o próximo século. As recentes notícias de megafusões entre grandes grupos americanos do setor confirmam essa tendência e revelam que eles estão se preparando para a nova realidade. Para ficar só no âmbito do mercado audiovisual, o consumo de imagens é uma necessidade humana distante de ser satisfeita e cresce permanentemente com a multiplicação das TVs de sinal fechado, aberto, CD-ROM e outras tecnologias que todos os dias apontam em novas direções, alargando ainda mais as possibilidades.
Pode parecer cabotinismo, mas o Brasil é um dos poucos países em boas condições de competir com os EUA nesse setor: possui abundância de matéria-prima para a geração do produto cinematográfico e congêneres graças ao sincretismo cultural de nossa nação.
Basta dizer que só o fenômeno do cangaço seria suficiente para se produzir uma quantidade de filmes comparável à do "western" americano. Temos ainda a história das Entradas e Bandeiras, das guerras separatistas, das guerras com os países vizinhos, da Independência e da República, além dos costumes vinculados aos morros cariocas, bossa-nova, samba, futebol, e dos ciclos econômicos do ouro, da borracha, do café, do cacau, uma temática sem limites.
Somente esse último forneceu material para que Jorge Amado construísse seu edifício literário. Outros países possuem uma cultura forte, interessante e até milenar, mas muito poucos apresentam nossa diversidade, resultado da constituição multirracial e não-preconceituosa de nosso povo.
Ao lado disso, dispomos de recursos humanos, cujo talento já foi testado e aprovado, inclusive no excelente nível de nossa publicidade. Para completar, temos robusto mercado interno que, se conquistado, nos daria poder de competitividade no mercado externo.
O que sempre nos faltou foi financiamento para a infra-estrutura necessária a uma indústria cultural moderna. Nesse sentido, as leis de incentivo fiscal à cultura que surgiram no Brasil nos últimos anos e que estão sendo aperfeiçoadas com o uso representam a grande esperança do setor. Mesmo sendo subutilizadas por diversos fatores, já respondem pela maior parte da produção artística do país, que se encontra em franco crescimento em todos os segmentos e começa a insinuar os contornos de uma revolução.
Qualquer criança de escola sabe que a melhor forma de proteger fronteiras contra invasões é povoá-las. Vamos povoar o imaginário brasileiro com criaturas também brasileiras.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 60, advogado tributarista, é professor emérito da Universidade Mackenzie e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

PAULO PÉLICO, 39, produtor de cinema, é produtor associado do filme "Sábado", de Ugo Giorgetti.

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