São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 1995
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Antropólogo quer criar polícia aliada a cidadão

FERNANDO MOLICA
DA SUCURSAL DO RIO

Principal organizador da caminhada Reage Rio, o antropólogo Rubem César Fernandes, 52, diz que a manifestação tem dois objetivos principais: reformar a polícia e integrar as favelas à cidade.
Segundo ele, o Brasil ainda não teve a experiência de criar uma polícia "aliada da cidadania". A passeata quer reunir amanhã 1 milhão de pessoas no centro do Rio em protesto contra a violência. Secretário-executivo do Viva Rio -movimento fundado há dois anos-, Fernandes classifica de "provocação" o trocadilho que procura identificar a organização com a parcela mais privilegiada da cidade: o Viva Rio não passaria de um "Viva Rico".
A seguir, os principais trechos da entrevista à Folha:

Folha - Qual o objetivo da caminhada?
Rubem César Fernandes - Criar um ambiente de solidariedade que reúna a cidade inteira, reagindo a uma tendência de divisão, de acusações, de medo. A idéia é viabilizar medidas concretas que permitam enfrentar os problemas.
Não é um momento de confronto político, sobre quem ganha ou quem perde com a manifestação. A aposta é que ou todos vencemos juntos ou iremos perder juntos.
Folha - A idéia de uma caminhada pela paz não é muito vaga? Não faltaria aí um objetivo mais específico?
Fernandes - É vago, mas violência é um tema muito complexo, que tem muito a ver com a percepção das pessoas.
Folha - Quando o sr. diz que não há política, vencedores ou perdedores, não está passando por cima de uma série de conflitos sociais?
Fernandes - Não queremos esconder os problemas. Estamos tentando criar condições para um enfrentamento desses problemas. Queremos sair da discussão ideológica.
Folha - Mas a discussão não é ideológica?
Fernandes - Não no aspecto partidário, de poder. Podemos estar tratando do plano ideológico fundamental, que é valorizar a idéia da cooperação, de pertencer à mesma cidade, criar vínculos de solidariedade na mesma cidade.
Estamos no nível elementar: é óbvio que todos queremos paz. Mas vale a pena juntar uma cidade para dizer o óbvio. Teremos depois um segundo momento em que se discutirão interesses, projetos. Momento em que os interesses terão que ser negociados.
A caminhada tem dois grandes temas como foco: um é a reforma da polícia e o outro é a integração das favelas à cidade. Essa integração é uma pauta social que envolve não apenas os governos mas também os empresários.
Folha - Ao falar sobre violência policial, o chefe da Polícia Civil do Rio, delegado Hélio Luz, diz que a sociedade tem a polícia que quer...
Fernandes - Ele tem razão.
Folha - O sr. acha que há, mesmo entre pessoas que participarão da manifestação, interesse em mudar a polícia?
Fernandes - A gente está construindo uma outra concepção de polícia e de segurança. A sociedade está mudando, está procurando, não tem muita clareza sobre que polícia quer.
Folha - A idéia da "apartação", da separação social, ainda está muito presente, portanto?
Fernandes - Claro, está na fantasia de todo mundo e a realidade dos fatos está mais para apartação do que para outra coisa. O caminho da apartação é incompatível com a democracia. Temos que ter segurança que sirva à cidadania.
O Brasil não conhece a idéia de polícia aliada à cidadania, é uma experiência que faz falta. Foi construída uma polícia para trabalhar nos porões, nós queremos agora sair dos porões. Folha - A direção da CUT (Central Única dos Trabalhadores) do Rio critica a presença de empresários na passeata e diz que o ato quer os pobres apenas para reforçar as reivindicações dos setores mais privilegiados. Como o sr. vê estas críticas?
Fernandes - Elas fazem parte das desconfianças e a gente está apostando na boa-fé e em uma nova maneira de enfrentar os conflitos. Por isso, imaginamos a caminhada em forma de alas, permitindo aos vários setores da sociedade colocar as suas reivindicações. Queremos que estes conflitos aflorem para que sejam resolvidos.
Folha - Como o sr. reage ao trocadilho que classifica o Viva Rio de "Viva Rico"?
Fernandes - É uma provocação que não pega justamente porque os sindicatos, com todas as questões e dúvidas, estão na coordenação.
Além disso, o Viva Rio surgiu de dois traumas sucessivos, ocorridos em julho e agosto de 93, a chacinas da Candelária e de Vigário Geral.
Folha - Há risco da repercussão da passeata ser na linha apenas do mais e melhor polícia?
Fernandes -Há. Mas, para evitar que isto aconteça, é fundamental que o povo de favela esteja na caminhada. A presença deles cria espaços de reivindicação.
Folha - O movimento assumiu como lema o "1 milhão (de pessoas) por 1 bilhão de reais". Como seria a aplicação desse R$ 1 bilhão?
Fernandes - O bilhão tem que reverter em projetos de reforma da polícia, principalmente em termos de recursos humanos e em projetos de integração social. Folha - O sr. acha que a descoberta de drogas na Fábrica de Esperança e a reação do governador Marcello Alencar influenciarão na caminhada? Fernandes - Já influíram. Isso tudo revigora o movimento, dá mais uma razão para olhar para cima e dizer "Reage Rio". A Fábrica de Esperança não é cercada de muros. O que houve é grave, mas quem está trabalhando dentro de favela se expõe a esses perigos.
Folha - E as declarações do governador?
Fernandes - Acho lamentáveis. Tenho certeza de que, depois da caminhada, tudo será esclarecido, voltaremos a conversar com ele.

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Sobre a passeata à pág. 3-1

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