São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 1995
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O anu com a garça

JOSUÉ MACHADO

FHC irritou-se com as críticas ao Projeto Sivam e disse que "não podemos voltar para trás. E para a frente?
"Voltar para trás" equivale a "sair para fora", "subir para cima", "descer para baixo", "entrar para dentro", "sentar-se com a bunda", clássicos exemplos do velho pleonasmo vicioso. Pleonasmos dessa natureza são conhecidos também pelos apelidos de batologias, perissologias e tautologias.
Coisas assim só se dizem por distração. Ou sob o domínio de "violenta emoção", de quem se indigna mais com o modo de obter a acusação do que com o teor dela, por grave que seja. Uma graça.
"Violenta emoção", aliás, faz parte do jargão jurídico-policial. Sob "violenta emoção" o que se faz e diz de bobagens é uma grandeza. Ele poderia ter dito "voltar no tempo", "voltar às velhas práticas corruptas", "voltar à vaca fria". Até "voltar à intolerância com a oposição".
Disse mais FHC. Acusou democraticamente os tais críticos de ter "espírito de corvo" e depois falou que tinham "vontade de sentir cheiro de carniça", uma "carniça que exala da consciência malsã". Cacilda!
Houve aí certa confusão de anus com garças. Quando falou em corvo, FHC queria se referir ao nosso urubu ou ao abutre de outras paragens. O poético corvo cantado por Edgar Allan Poe (1809-1849) é ave negra que não tem gosto por carniça nem parentesco com o urubu ou o abutre, ambos carniceiros e porcalhões, por isso extremamente úteis. Dizem até que são muito mais úteis do que certos representantes legislativos. Porque eles, os urubus e abutres com penas, comem sua carnicinha, evitando epidemias, desinteressadamente, sem pedir nada em troca. Tampouco entoam o refrão desesperançado do corvo de Poe, chorando Lenora: "Nevermore!", "Nunca mais!", "Nunca mais!', "Nunca mais!". (O corvo é ave inteligente que aprende algumas palavras.)
Na verdade, alguns de nossos urubus engravatados falam, sim, em coro permanente: "Quero mais!", "Quero mais!", "Quero mais!".
O pior é que lhes dão sempre mais, sempre mais, sempre mais. Depois se queixam.
"Québec"
Um ou outro locutor de rádio andou pronunciando o nome da província de Quebec (sem acento) como "Québec", considerando mais forte a primeira sílaba, como se o nome da província canadense e de sua capital fosse uma estranha mistura de paroxítona com proparoxítona. Melhor explicar: Quebec (sem acento) é palavra de suas sílabas, mas o "c" final, que deveria ser levemente pronunciado, ganhou uma força indecente na pronúncia brasileira, de forma que houve pessoas pronunciando algo como "Québeque", proparoxítona, que não é, mas como são mágico, trágico, príncipe, sábado, lógico e outras dos versos de Chico Buarque em "Construção", um dos mais belos poemas de música popular já construídos neste mundo. Que nos perdoem os fãs de Roberto e Erasmo Carlos.
Mas o "Québeque" dos locutores distraídos é culpa da Folha, com seu efeito multiplicativo, que preferiu a grafia francesa "Québec", com o acento agudo francês indicativo de vogal fechada e não de sílaba tônica, sabemos todos. Quer dizer, em francês, a língua dominante em Quebec (sem acento), pronuncia-se "Quebéc", mas escreve-se "Québec", como a Folha e os quebequenses. Outros jornais e revistas nativos escreveram Quebec em português.
Alguns curiosos poderiam perguntar por que então a Folha não grafa também "Montréal", com acento, como no Canadá? Ou "Genève" em vez de Genebra, ou "Marseille" em vez de Marselha? Por que não "Belgique" e "Bruxelles" em vez de Bélgica e Bruxelas, e assim por diante?
Sabedeus.
A propósito, quando a seleção belga de futebol veio jogar no Brasil há alguns anos, um locutor esportivo anunciou com entusiasmo:
"Neste momento os bélgicos entram em campo!".

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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