São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 1995
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A desfaçatez como estilo

ROBERTO FREIRE

Todo debate de idéias pode fluir por pelo menos dois caminhos: o do argumento, que perfila conceitos, dados, teses e posicionamentos políticos e ideológicos claros; ou o da mesquinharia, trilha por onde transitam acusações pessoais, ressentimentos, preconceitos e intolerância. O primeiro, mesmo realizado em termos às vezes duro e áspero, preconiza o avanço das idéias; o segundo pauta-se apenas pela mediocridade.
Refiro-me ao triste artigo "O adesismo como bandeira", do deputado Jaques Wagner (PT-BA), publicado na Folha em um dia igualmente triste, o de finados. Vazado em agressões pessoais, não conseguiu em nenhum momento discutir uma questão central que eu levantara antes no mesmo jornal -a presença do autoritarismo e do viés golpista no seio das esquerdas.
Com seu artigo, Jaques Wagner, tão doce no trato pessoal e tão agressivo pelos jornais -a ponto de acreditarmos que na rudeza obedeceu aos velhos cânones do centralismo democrático-, coloca-se no campo mais pobre do debate e queima muitas de suas credenciais para discutir os dilemas e os novos paradigmas da esquerda. Adota a desfaçatez como estilo.
Se o deputado não estivesse embalado pelo rancor ao PPS e seus parlamentares, poderia perceber que em nenhum momento condenei as esquerdas ou absolvi os partidos de direita.
Ressalvando os limites da pesquisa Datafolha, simplesmente alertei para o perigo da constatação de que boa parte dos simpatizantes do PT (16%) e do PDT (19%) daria "apoio sob certas circunstâncias" à ditadura como regime político. E lembrava que na sociedade moderna nenhum partido -"nem mesmo de esquerda"- escaparia deste comportamento errante. Para bom entendedor, nem mesmo o "miscroscópico" PPS.
Acusa-me, e também ao PPS, de termos sido a base de "Um Guia Genial dos Povos" (refere-se a Stalin) e de um "Cavaleiro da Esperança" (Luis Carlos Prestes) e esquece, como se estivesse varrendo lixo indesejável para debaixo do tapete da história, o fato de que expressivas lideranças políticas do PT fazem parte deste mesmo legado.
E que em 1987, no encontro nacional também do PT, mensagens como a de Erich Honecker, da Alemanha Oriental -onde dezenas de quadros petistas estudaram-, foram aplaudidas calorosamente.
Talvez a diferença encontra-se na forma de encarar a história. Nós do PPS, que com PCB desde 1958 optamos pelo caminho da democracia como processo, nos orgulhamos das nossas experiências de luta. Futuro, afinal, se faz com balanço de erros e acertos e não com a negação do passado. Além do mais, ao contrário do que parece pensar o deputado, a esquerda não nasceu com as greves do ABC e nem com a constituição do PT -ela antecede e ultrapassa no tempo e no espaço estes dois importantes acontecimentos políticos.
Nunca deixei de manifestar otimismo ante a possibilidade da esquerda democrática se constituir em uma efetiva alternativa de poder. Esta viabilidade tem muito a ver com o sucesso do Partido dos Trabalhadores, que alargou o espaço da esquerda na sociedade no momento em que em outros países este se reduzia. Portanto a acusação de que pretendo banir o PT e o PDT do futuro democrático é leviana e absurda. Se o PT se exclui do debate político no tocante, por exemplo, às reformas do Estado, a responsabilidade é inteiramente sua.
Jaques Wagner faz questão de distorcer nossas afirmações, numa clara atitude de má-fé. Em pleno processo de impeachment de Collor, alguns segmentos de esquerda classificavam a CPI como conluio de deputados que acabaria em "pizza". O Fora Collor, se conseguiu unificar um movimento, tinha em algumas de suas vertentes mais radicalizadas um conteúdo golpista, posto que estas viravam as costas para o processo institucional que, afinal, foi competente para tirar do Palácio do Planalto um presidente inidôneo.
Sobre o leviano comentário do deputado acerca da minha participação naquele episódio dispenso comentários. Os jornais registram: o PPS foi um dos primeiros partidos a se integrar na luta pelo impeachment.
O deputado não compreende que, ao se acusar Fernando Henrique Cardoso de traidor, de agredir "frontalmente os interesses da nação", de títere dos interesses dos monopólios e outros vitupérios, está se fomentando palavras de ordem do tipo "Fora FHC", de conteúdo golpista. A tática oposicionista, legítima, não pode servir para alienar ou confundir a consciência do cidadão; deve ser formadora de opiniões democráticas distintas e alternativas. É esta oposição que o PPS pratica.
O projeto da esquerda democrática precisa ainda ser construído. Se demanda líderes para encaminhá-lo, prescinde do messianismo. E só haverá este projeto se a esquerda for efetivamente tolerante e pluralista e não ver a democracia como tática ou exclusividade sua ou, então, de poucos partidos grandes -como quer equivocadamente o deputado.

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