São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 1995
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A questão da terra

FÁBIO DE OLIVEIRA LUCHÉSI

Várias nações conseguiram realizar com êxito os seus projetos de reforma agrária. O melhor exemplo vem dos Estados Unidos da América, que a realizaram há já mais de um século, mediante a conquista e colonização de todo o oeste do seu território, com o que, além de propiciar terras aos que dela necessitavam, transformou em realidade sua soberania territorial do Atlântico até o Pacífico.
Mas o sucesso dependeu do respeito a alguns princípios básicos, isto é, aos direitos adquiridos, à justiça social na partilha da terra e às regras de política agrícola adequadas, tudo feito com obediência ao devido processo legal. Toda a atuação, quer do Estado, quer dos cidadãos, submeteu-se às regras jurídicas vigentes.
No Brasil, a reforma agrária tem sido impossível porque a União não atua de modo racional nem de acordo com o devido processo legal. Vale dizer: não se preocupa em ocupar os espaços territoriais vazios -com o que a sua soberania territorial é mera ficção jurídica sobre a maior parte do território nacional- e, quando desapropria, não cumpre o que a Constituição e as leis determinam.
Basta ver que o vigente Orçamento autorizou a União a desapropriar 400 mil hectares de terras para fins de reforma agrária e o Poder Executivo, contudo, já decretou a desapropriação de mais 1,2 milhão de hectares de terras, sem se preocupar com o fato de que o artigo 167 da mesma Carta Magna fulmina esses atos como caracterizadores de crime de responsabilidade do presidente da República (parágrafo 1º).
Agora, o Poder Executivo federal está propondo ao Congresso Nacional modificações inconstitucionais nas regras processuais das desapropriações para fins de reforma agrária.
Se as modificações não passarem no Congresso (o que seria de esperar, em decorrência da inconstitucionalidade da proposta), o Poder Executivo e o Incra sempre poderão se justificar perante o seu público cativo dizendo que a reforma agrária não se faz por culpa do Legislativo. Mas, se o Legislativo agir dentro das regras esperadas do "é dando que se recebe", então, como sempre, a culpa será lançada sobre o Poder Judiciário.
E, nesse jogo de cena de empurra-empurra, a reforma agrária continuará empacada e os fazendeiros continuarão sendo os vilões de toda história. Ninguém se lembrará de que o governo federal, que prometeu assentar 40 mil famílias no ano de 1995, assentou pouco mais de 4.000 (embora alardeie o assentamento de mais de 20 mil) e que, por absoluta ausência de uma política agrícola adequada, expulsou do campo (ou desassentou), no mesmo período, mais de 90 mil agricultores que não puderam pagar as dívidas decorrentes de suas atividades agrícolas.
Não há como entender a política do governo federal em relação à questão da terra, pois, enquanto "agrária", assenta uns poucos e os relega a uma situação de abandono, na mais absoluta penúria, sem recursos ou meios de cultivar a terra; enquanto "agrícola", os expulsa em massa do campo para as periferias da cidades, em situação de insolvência econômica e moral.
Por isso é que não se pode continuar afrontando a Constituição federal e surrupiando os direitos fundamentais que ela assegura a qualquer cidadão, entre os quais o direito de se defender e de fazer valer as garantias individuais.
O direito de propriedade é uma dessas garantias que ao Estado cabe, em primeiro lugar, respeitar e impor que seja respeitado. Essa é a regra. A desapropriação é exceção, posto que autoriza que o próprio guardião desse direito o fira fundo, por motivos de interesse público ou interesse social.
Por isso, realizar a prometida reforma agrária é antes de tudo uma questão de vontade "jurídica", e não "política", como parece aos menos avisados. De nada adiantam projetos de novas leis para a questão da terra se esses "projetos" não guardarem respeito à Constituição federal.
Por outro lado, como impedimento à realização da reforma agrária, há o interesse dos manipuladores dos verdadeiros "sem-terra", que querem que a reforma agrária não se realize, mas continue apenas como bandeira de baderna que custa caro à nação brasileira.
A atuação desses manipuladores pode ser comparada àquela que hipoteticamente seria adotada pelos bancários que, pleiteando aumento de salários, até mesmo com base legal, não aguardassem a decisão judicial a respeito, mas, ao final de cada mês, se apropriassem da quantidade de moeda dos respectivos "caixas" a que se julgassem com direito.
Se os bancários assim procedessem, além do Judiciário, os órgãos governamentais, os meios de imprensa e a própria coletividade condenariam-nos por essa "justiça de mão própria".
Mas o mesmo não ocorre em relação aos manipuladores da "política" da reforma agrária, que sempre agem de modo a realizar a "justiça" de que se entendem credores, sempre de mão própria.
É por isso que o projeto de modificação das regras processuais relativas ao processo de desapropriação para fins de reforma agrária que está em pauta apenas caracteriza a absoluta falta de vontade jurídica da União em realizar a tão prometida reforma agrária.
Os verdadeiros "sem-terra", que dela precisam com urgência, e os agricultores em geral que se danem. O que importa é o que os atores desse circo transmitem em termos de ilusões à sociedade.

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