São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Cinema traz a cicatriz de seus cortes

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando Hollywwod deu vivas ao general reformado Will Hays, que chegava a Los Angeles, nos anos 20, com a missão de reformar os padrões éticos dos filmes, o que menos interessava, de fato, era a moral. No início da adolescência do cinema, sua popularização trazia como contrapartida a reação de uma América extremamente provinciana, muito diferente do mundo de Nova York e das grandes cidades da Costa Oeste. Várias ligas pelo país viam os filmes produzidos como se suas histórias se desenvolvessem nas pecaminosas Sodoma e Gomora.
Um medo reforçado pelas manchetes dos jornais do período, onde encontrar histórias sobre jovens mortas por orgias nos palácios de Bervely Hills era um fato comum. O mais famoso caso, e responsável pela convocação de Hays, foi o do comediante Fatty Arbuckle. Um ídolo das crianças preso por ter cometido estupro - e assassinato - usando uma garrafa. E foi sob esse clima que vários Estados americanos (apenas em 1921 foram 37 deles) faziam sua própria censura aos filmes. Muitas vezes mutilando as histórias.
A criação do famoso código Hays, que regularia os padrões de comportamento do cinema americano dos anos 20 aos 60 (quando foi substituído pelo sistema classificatório), nasce de uma necessidade econômica. Se Hollywood não precisava de moral, ao menos desejava, e muito, o dinheiro dos investidores de Wall Street.
Para a chegada do dinheiro era preciso que o cinema se mostrasse como uma indústria estável, capaz de domar os grupos de pressão e, ainda, conseguir o mesmo lucro de antes com regras que deveriam mostrar o "comportamento correto" sobre crimes contra lei, sexo, vulgaridade, obscenidade e etc.
O que se seguiu foi um constante cabo de guerra entre diretores, astros -Charles Chaplin temeu pelo destino do vagabundo Carlitos -e produtores, que motivados por razões econômicas mesmo involuntariamente, começavam a aceitar um clichê desenvolvido no período: a noção de filmes influenciando e sendo determinantes para o comportamento social.
Uma idéia que se torna cara aos regimes de força no mundo, como a ditadura franquista na Espanha ou os governos latino-americanos. Houve, claro, uma intenção de reter qualquer forma de liberalismo que pudesse ser transmitido por meio dos filmes. Mas houve também a construção de uma idéia: filmes podem "corromper a ordem pública".
E foi exatamente nesse registro de corrupção que a censura brasileira agia ao mutilar filmes com propostas "liberalizantes", como "Lolita", de Stanley Kubrick ou "O Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci. Enquanto essas obras sofriam restrições de ordem moral pelo mundo, no Brasil a isso se acrescentava um outro tipo de crime: a subversão de quem se dispusesse a exibir, ou mesmo assistir, tais filmes. Assim, o que acabou sendo sufocado no país foi a possibilidade de vanguarda e, ainda, de uma aproximação livre entre o cineasta e seu público.
Esse é o momento em que trabalhos de Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, entre outros, são tidos como um desvio. De "Os Cafajestes", de Ruy Guerra a "Pra Frente Brasil", de Roberto Farias. Como resultado, se afogava um cinema brasileiro com plenas possibilidades de ascensão e transformava, aos olhos do público, seus talentos em homens enlouquecidos.

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