São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Passeata vip

OTAVIO FRIAS FILHO

Era para ser o maior sequestro, ainda que simbólico, de todos os tempos: 1 milhão de pessoas em troca de 1 bilhão de reais, ao preço de mil por manifestante. O comparecimento à caminhada Reage Rio, no entanto, ficou aquém do anunciado; 100 mil, talvez, na média das avaliações que apareceram nos jornais, o que derrubaria consideravelmente o valor do resgate.
Uma das obsessões de Nelson Rodrigues, que não gostava de eventos do tipo, era a Passeata dos Cem Mil, como ficou conhecida a manifestação contra o regime militar em junho de 68, também no Rio de Janeiro. O dramaturgo colocou todas as suas caricaturas desfilando no protesto -a grã-fina de narinas de cadáver, o padre de passeata etc. Todo mundo foi, dizia, menos o povo.
A queixa é tradicional. Numa crônica famosa, Aristides Lobo descreveu a cena da proclamação da República notando que o povo assistira a tudo bestificado. Apesar da mobilização impressionante, 1932 foi um movimento de elites, assim como as duas deposições de Vargas, em 45 e em 54. A Marcha da Família, em 64, dispensa comentários. A campanha Diretas Já mereceria um capítulo à parte.
Na época, falávamos em comícios com mais de 1 milhão de pessoas. As avaliações ditas científicas, com fotos aéreas e cálculo de densidade estatística, só começaram a ser feitas mais tarde. Ficava-se à mercê do entusiasmo de quem avaliava e das máquinas dos governos estaduais, que jogaram tudo na campanha. Seria oportuno que uma dessas teses universitárias mostrasse o que de fato aconteceu.
Aliás, durante os 20 anos de regime militar, sempre que aconteceram manifestações de rua quem promovia e participava era gente de classe média, especialmente os estudantes. Houve as greves do ABC. Mas não seria difícil catalogar a aristocracia operária que fez aquelas greves, pelo seu perfil de renda e consumo, como parte da classe média. O povo propriamente dito continua sendo um enigma abissal.
Não foi diferente na manifestação de anteontem, contra a violência no Rio. Dava para identificar as pessoas pela roupa: quem estava de branco em geral era classe média e vinha da zona sul; quem não estava de branco parecia passar por ali e ter se juntado à caminhada, como ocorreria num fim de tarde no centro de qualquer metrópole brasileira, desde que houvesse alguma atração digna de nota.
E atrações não faltavam. Tropeçava-se em gente famosa; não é exagero registrar que uma parte dos manifestantes era composta de caçadores de autógrafos. A apresentadora Maria Paula, por exemplo, teve câimbras de tanto concedê-los, ela que ainda não atingiu o estrelato inacessível de uma Xuxa. Arnaldo Jabor dizia que a passeata parecia estranha, muito estranha. "Estranho é o blazer dele", alguém comentou.
Incrível o número de entidades presentes. Viva Rio, Loucos Varridos, a Vinde do pastor Caio Fábio (esse religioso com nome de tribuno da plebe era um dos triúnviros da caminhada, ao lado de Betinho e do antropólogo Rubem César), ONGs para todos os gostos, até um movimento pró-funileiros. A impressão é a de que, havendo falta de organização na base da sociedade, há excesso no topo. É a nossa tradição.

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