São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995 |
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Os sentidos da diferença
ARTHUR NESTROVSKI
Esta condição, segundo Pater, já afligia o próprio Platão, que ele descreve como um autor do "decadentismo": "A despeito do que tem de frescor, não há em Platão nada de absolutamente novo: o que parece novo é um palimpsesto, onde cada partícula já viveu e morreu muitas vezes". Depois de Derrida, passagens como essa ressoam com temas do nosso momento: a origem, a escrita, a regressão infinita do significado, a leitura como invenção e crítica e a crítica como um movimento de leitura. Mesmo isolada de seu contexto, a frase de Pater é o bastante para demarcar um certo território no qual vai-se dar, para nós, o pensamento de Derrida. Em sua chegada, ou não chegada ao nosso país, a história desse pensamento passa pelos caminhos da crítica literária nos Estados Unidos. Foi em meados da década de 70 que a obra de Derrida se estabeleceu na cultura acadêmica norte-americana. Sucintamente, pode-se dizer que a história de Derrida nos EUA começa nos departamentos de literatura, para só depois chegar à filosofia e, mais recentemente, à ciência social e à política, com repercussões em virtualmente todos os aspectos da vida institucional. O advento americano de Derrida tem lugar contra o pano de fundo do "New Criticism". Para os "novos críticos", cada poema é um objeto "orgânico, que se volta sobre si mesmo, e construído de tal forma a reconciliar características opostas. Pedagogicamente eficaz, e imensamente influente na universidade, o "New Criticism" vai-se ver, porém, incapaz de acomodar outra idéia de literatura, que coloque em xeque a noção de um significado último das obras e não se satisfaça com uma leitura puramente formal dos textos literários. Na era de Freud, Lacan, Heidegger e outros críticos da autonomia do sujeito, o "New Criticism" esforça-se ainda para dar continuidade às postulações do adversário de Pater, em fins do século 19: Matthew Arnold. Defendendo os valores "humanos da cultura", contra as dissoluções da "anarquia", Arnold privilegiava o ideal "helênico" da claridade, da espontaneidade e do retorno a uma origem natural contra os desconfortos "hebraicos" da repetição, do exílio, da tardividade e do sentido de velamento que caracteriza o modernismo pateriano. E é precisamente contra os desdobramentos da crítica de Arnold, em autores como T.S. Eliot e I.A. Richards, que vêm se insurgir o assim chamado grupo de Yale, inventores da "desconstrução": Geoffrey Hartman, J. Hillis Miller, Paul de Man, Harold Bloom e o próprio Jacques Derrida. Em algum novo "Dicionário de Idéias Feitas", a desconstrução poderia ser definida como "método que permite ler o que se quiser nos textos de qualquer um". Nada poderia estar mais longe dos rigores de Derrida, como leitor de Rousseau, Platão ou Heidegger. Talvez fosse mais justo descrevê-la como a tentativa, precisamente, de não ler qualquer coisa nos textos de quem se quiser. Para nossos propósitos, aqui, o mais importante, desde logo, é apontar a demanda ética da desconstrução. Questões filosoficamente complexas como a do fim da metafísica, da presença e da voz, do suplemento e da escritura são subjacentes a um propósito mais amplo: impedir que um vocabulário exerça seu domínio sobre outro. Toda a filosofia de Derrida, que neste aspecto deve muito aos escritos de Emmanuel Levinas, está voltada para a resistência a qualquer forma de linguagem capaz de situar, antecipadamente, o que foi dito, ou o que se vai dizer. A desconstrução é uma filosofia da antiviolência, de reconhecimento do outro enquanto tal. No lugar de significados transcendentais e últimos, a desconstrução descreve apenas a "diferença" como condição relativa dos significados entre si. A partir deste ponto, pode-se ater à construção do pensamento, num cenário linguístico, não metafísico. Levada a cabo, uma leitura desconstrutivista instala uma condição plenamente secular do pensamento. Pode-se imaginar o efeito de suas idéias para a leitura de textos literários num contexto como o do "New Criticism", ainda marcado pela possibilidade de reconciliação da linguagem poética. O que não se poderia imaginar é a dimensão institucional que viriam a ter essas idéias, em pouco tempo, na sociedade americana e, mais tarde, pelo mundo afora. Muito diluídas, sem dúvida, e bastante afastadas do contexto filosófico, certas noções como "diferença" acabariam provocando uma transformação sem paralelo na vida social do país. É o que se chama, em duas palavras, de "politicamente correto". Para quem vê isto à distância é compreensível a tentação de ridicularizar o que parece excessivo ou afetado, como projeto de transformação nacional. Mas o politicamente correto, visto mais de perto, é a "disseminação" de um movimento que tem seu início apenas na salas de aula do departamento de literatura comparada em New Haven e ganha logo outro peso e importância. Estimulados por uma posição de leitura capaz de resistir à dominação de marcas sexuais, ideológicas e religiosas, estudantes de filosofia e literatura começam, em meados da década de 80, a migrar para outros campos: não só as outras artes, mas também os estudos da mulher, a história, a ciência política e, de maneira especial, o direito. Há uma diferença (no sentido trivial da palavra) entre redigir um ensaio numa revista especializada de literatura e habilitar-se a alterar padrões de jurisprudência. Feministas, historiadores e outros intelectuais americanos politicamente engajados passariam, a partir dos anos 80, a questionar, entre outras coisas, as bases filosóficas do sistema legal. Qual é, afinal, o substrato das leis, perguntam eles. Se não existe um "humano essencial" e último, e se percebemos, na legislação, desvios e interesses sexualmente ou racialmente determinados, o que nos cabe é, a partir de um exame dessas condições, efetuar as alterações cabíveis. Esta passagem, extremamente eficaz nos Estados Unidos, entre o estudo da teoria -que permite a identificação de limites do vocabulário- e o questionamento da própria base do sistema civil -que permite alterar o funcionamento das instituições-, não tem equivalente, na mesma escala, em nenhum outro lugar. Mas seus efeitos encontrarão eco, de uma forma ou outra, em virtualmente todos os países de cultura liberal. Nem sempre é clara a relação entre esses efeitos e a obra imensamente sofisticada e tecnicamente desafiadora de Derrida. Nos últimos anos, o próprio Derrida vem escrevendo, com característica abundância, sobre problemas políticos (apartheid, queda do marxismo, política sexual, educação e universidade). Em parte, ao menos, é uma maneira de se proteger contra o varejo de suas idéias, quando não a inversão completa do que ele escreveu. Mas a influência da desconstrução, sob vários nomes, no que se chama de esfera pública já é algo que foge ao controle da filosofia. É a marca por excelência do nosso tempo, mesmo quando o tempo parece capaz de absorver tudo e fazer o que quer com os textos de todo mundo. No Brasil, onde Derrida foi mais ignorado do que resistido, a leitura de suas obras poderia trazer uma contribuição singular, se bem que desconfortável. Não estamos exatamente num domínio livre de prepotência e discriminação de idéias e de pessoas. Se a filosofia de Derrida parte de um princípio ético -o reconhecimento do outro- ela conduz, pragmaticamente, a um ideal político que, na falta de outra palavra, podemos chamar de democracia. Esta "democracia" não existe: é uma forma para sempre incompleta, para sempre postergada e que nos compete perpetuamente inventar. "Um certo gosto pela metafísica talvez seja uma dessas coisas a que precisamos renunciar", escreveu Pater, há quase cem anos. Um certo desgosto com a metafísica talvez seja uma dessas coisas que, depois de Derrida, nós precisamos aprender, sem a pressa de uma resposta pronta e sem a arrogância de quem não quer nem ler nem perguntar. Texto Anterior: Mistérios do além Próximo Texto: MERCOSUL; IMIGRAÇÃO Índice |
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