São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Os sentidos da diferença

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Seria irônico procurar uma origem para o maior crítico da idéia das origens. Mas há uma passagem no grande estudo de Walter Pater, "Platão e o Platonismo" (1893), que serve como ponto de entrada para esses comentários. "No curso natural do desenvolvimento orgânico, cada um de nós chega ao mundo", diz Pater, "vestindo os trajes do passado... fatalmente coberto naquelas leis ou artifícios da hereditariedade que tomamos pela nossa vontade; numa linguagem que é, ela mesma, responsável pela maior parte das nossas idéias; em hábitos morais e intelectuais, costumes, literatura, em casas mesmo que nunca construímos..."
Esta condição, segundo Pater, já afligia o próprio Platão, que ele descreve como um autor do "decadentismo": "A despeito do que tem de frescor, não há em Platão nada de absolutamente novo: o que parece novo é um palimpsesto, onde cada partícula já viveu e morreu muitas vezes". Depois de Derrida, passagens como essa ressoam com temas do nosso momento: a origem, a escrita, a regressão infinita do significado, a leitura como invenção e crítica e a crítica como um movimento de leitura. Mesmo isolada de seu contexto, a frase de Pater é o bastante para demarcar um certo território no qual vai-se dar, para nós, o pensamento de Derrida. Em sua chegada, ou não chegada ao nosso país, a história desse pensamento passa pelos caminhos da crítica literária nos Estados Unidos.
Foi em meados da década de 70 que a obra de Derrida se estabeleceu na cultura acadêmica norte-americana. Sucintamente, pode-se dizer que a história de Derrida nos EUA começa nos departamentos de literatura, para só depois chegar à filosofia e, mais recentemente, à ciência social e à política, com repercussões em virtualmente todos os aspectos da vida institucional.
O advento americano de Derrida tem lugar contra o pano de fundo do "New Criticism". Para os "novos críticos", cada poema é um objeto "orgânico, que se volta sobre si mesmo, e construído de tal forma a reconciliar características opostas. Pedagogicamente eficaz, e imensamente influente na universidade, o "New Criticism" vai-se ver, porém, incapaz de acomodar outra idéia de literatura, que coloque em xeque a noção de um significado último das obras e não se satisfaça com uma leitura puramente formal dos textos literários. Na era de Freud, Lacan, Heidegger e outros críticos da autonomia do sujeito, o "New Criticism" esforça-se ainda para dar continuidade às postulações do adversário de Pater, em fins do século 19: Matthew Arnold.
Defendendo os valores "humanos da cultura", contra as dissoluções da "anarquia", Arnold privilegiava o ideal "helênico" da claridade, da espontaneidade e do retorno a uma origem natural contra os desconfortos "hebraicos" da repetição, do exílio, da tardividade e do sentido de velamento que caracteriza o modernismo pateriano. E é precisamente contra os desdobramentos da crítica de Arnold, em autores como T.S. Eliot e I.A. Richards, que vêm se insurgir o assim chamado grupo de Yale, inventores da "desconstrução": Geoffrey Hartman, J. Hillis Miller, Paul de Man, Harold Bloom e o próprio Jacques Derrida.
Em algum novo "Dicionário de Idéias Feitas", a desconstrução poderia ser definida como "método que permite ler o que se quiser nos textos de qualquer um". Nada poderia estar mais longe dos rigores de Derrida, como leitor de Rousseau, Platão ou Heidegger. Talvez fosse mais justo descrevê-la como a tentativa, precisamente, de não ler qualquer coisa nos textos de quem se quiser.
Para nossos propósitos, aqui, o mais importante, desde logo, é apontar a demanda ética da desconstrução. Questões filosoficamente complexas como a do fim da metafísica, da presença e da voz, do suplemento e da escritura são subjacentes a um propósito mais amplo: impedir que um vocabulário exerça seu domínio sobre outro. Toda a filosofia de Derrida, que neste aspecto deve muito aos escritos de Emmanuel Levinas, está voltada para a resistência a qualquer forma de linguagem capaz de situar, antecipadamente, o que foi dito, ou o que se vai dizer. A desconstrução é uma filosofia da antiviolência, de reconhecimento do outro enquanto tal.
No lugar de significados transcendentais e últimos, a desconstrução descreve apenas a "diferença" como condição relativa dos significados entre si. A partir deste ponto, pode-se ater à construção do pensamento, num cenário linguístico, não metafísico. Levada a cabo, uma leitura desconstrutivista instala uma condição plenamente secular do pensamento.
Pode-se imaginar o efeito de suas idéias para a leitura de textos literários num contexto como o do "New Criticism", ainda marcado pela possibilidade de reconciliação da linguagem poética. O que não se poderia imaginar é a dimensão institucional que viriam a ter essas idéias, em pouco tempo, na sociedade americana e, mais tarde, pelo mundo afora. Muito diluídas, sem dúvida, e bastante afastadas do contexto filosófico, certas noções como "diferença" acabariam provocando uma transformação sem paralelo na vida social do país. É o que se chama, em duas palavras, de "politicamente correto".
Para quem vê isto à distância é compreensível a tentação de ridicularizar o que parece excessivo ou afetado, como projeto de transformação nacional. Mas o politicamente correto, visto mais de perto, é a "disseminação" de um movimento que tem seu início apenas na salas de aula do departamento de literatura comparada em New Haven e ganha logo outro peso e importância.
Estimulados por uma posição de leitura capaz de resistir à dominação de marcas sexuais, ideológicas e religiosas, estudantes de filosofia e literatura começam, em meados da década de 80, a migrar para outros campos: não só as outras artes, mas também os estudos da mulher, a história, a ciência política e, de maneira especial, o direito. Há uma diferença (no sentido trivial da palavra) entre redigir um ensaio numa revista especializada de literatura e habilitar-se a alterar padrões de jurisprudência. Feministas, historiadores e outros intelectuais americanos politicamente engajados passariam, a partir dos anos 80, a questionar, entre outras coisas, as bases filosóficas do sistema legal.
Qual é, afinal, o substrato das leis, perguntam eles. Se não existe um "humano essencial" e último, e se percebemos, na legislação, desvios e interesses sexualmente ou racialmente determinados, o que nos cabe é, a partir de um exame dessas condições, efetuar as alterações cabíveis.
Esta passagem, extremamente eficaz nos Estados Unidos, entre o estudo da teoria -que permite a identificação de limites do vocabulário- e o questionamento da própria base do sistema civil -que permite alterar o funcionamento das instituições-, não tem equivalente, na mesma escala, em nenhum outro lugar. Mas seus efeitos encontrarão eco, de uma forma ou outra, em virtualmente todos os países de cultura liberal.
Nem sempre é clara a relação entre esses efeitos e a obra imensamente sofisticada e tecnicamente desafiadora de Derrida. Nos últimos anos, o próprio Derrida vem escrevendo, com característica abundância, sobre problemas políticos (apartheid, queda do marxismo, política sexual, educação e universidade). Em parte, ao menos, é uma maneira de se proteger contra o varejo de suas idéias, quando não a inversão completa do que ele escreveu. Mas a influência da desconstrução, sob vários nomes, no que se chama de esfera pública já é algo que foge ao controle da filosofia. É a marca por excelência do nosso tempo, mesmo quando o tempo parece capaz de absorver tudo e fazer o que quer com os textos de todo mundo.
No Brasil, onde Derrida foi mais ignorado do que resistido, a leitura de suas obras poderia trazer uma contribuição singular, se bem que desconfortável. Não estamos exatamente num domínio livre de prepotência e discriminação de idéias e de pessoas. Se a filosofia de Derrida parte de um princípio ético -o reconhecimento do outro- ela conduz, pragmaticamente, a um ideal político que, na falta de outra palavra, podemos chamar de democracia.
Esta "democracia" não existe: é uma forma para sempre incompleta, para sempre postergada e que nos compete perpetuamente inventar. "Um certo gosto pela metafísica talvez seja uma dessas coisas a que precisamos renunciar", escreveu Pater, há quase cem anos. Um certo desgosto com a metafísica talvez seja uma dessas coisas que, depois de Derrida, nós precisamos aprender, sem a pressa de uma resposta pronta e sem a arrogância de quem não quer nem ler nem perguntar.

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