São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Uma identidade problemática

OCTAVIO SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se for esta a expectativa do leitor, certamente ficará decepcionado. Em "Psicanálise Brasileira", deparar-se-á com artigos cuja maior parte só seria razoável reunir sob esse título se fosse o caso de se tratar de uma edição estrangeira: "Psicoanálisis Brasileña" ou "Brazilien Psycho-Analysis".
Numa iniciativa editorial deste gênero, estaria implícito que o teor da publicação visaria a apresentar, a leitores estrangeiros interessados, uma produção psicanalítica cujo único denominador comum seria o fato de serem, seus autores, psicanalistas brasileiros. Nesse caso, seria aceitável, e até mesmo proveitoso, para a obtenção de uma rápida perspectiva à vol d'oiseau da produção de psicanalistas brasileiros, ter acesso a uma série de artigos não unificados por qualquer temática definida. No entanto, felizmente, alguns dos autores não recuaram diante do desafio do tema proposto pela coletânea e trataram de pensar a questão da psicanálise brasileira em termos propriamente substantivos. É aos artigos destes autores que dedicaremos nossos comentários.
Elias e Elizabeth da Rocha Barros consideram o anistoricismo que preside a assimilação do kleinismo pelos psicanalistas brasileiros como a principal causa das dificuldades de produção de um pensamento psicanalítico kleiniano brasileiro, com direito de cidadania internacional. A assimilação anistórica produz dois efeitos paradoxais: por um lado, adotamos como respostas definitivas pensamentos e conceitos que, em sua origem, são gerados num contexto conflituoso. Por outro lado, não conseguimos nos desvencilhar de um mal-estar gerado pela constatação de que nossa produção psicanalítica "é caracterizada como sendo fruto de imitação e mera cópia de idéias européias. Idealização dos autores estrangeiros mesclada com tentativas frustradas de independência intelectual, as quais não tardam a se transformar em xenofobia".
No entanto, precisam os autores -e aí encontramos a originalidade do seu ponto de vista-, tal assimilação anistórica não deve ser confundida com a questão das relações entre um centro colonizador e uma periferia colonizada. A "imitação" que resulta da assimilação anistórica não deve ser atribuída apenas ao "colonizado". Ela ocorre até mesmo no interior dos próprios centros em que as inovações teórico-clínicas se produzem.
Sua causa não é a relação colonizador-colonizado, mas sim o modo pelo qual as sociedades de consumo em geral, sejam elas colonizadoras ou colonizadas, tratam o conhecimento original, transformando-o em grife a ser consumida indiscriminadamente. Sendo assim, no caso do kleinismo inglês, por exemplo, os psicanalistas brasileiros estariam tão alienados em relação ao contexto conflituoso e fecundo do pensamento kleiniano quanto um considerável contingente de psicanalistas ingleses, os quais também teriam um modo de assimilação consumista dos pensamentos e conceitos produzidos em seu próprio meio cultural.
Na concepção de Elias e Elizabeth da Rocha Barros, a terapia (no sentido de "cuidado") para tais descaminhos não poderia fazer a economia de uma recontextualização dos conflitos que geraram o pensamento original dos kleinianos ingleses verdadeiramente criativos. Somente por esta via se tornaria possível a reinserção do pensamento psicanalítico brasileiro numa linhagem epistemologicamente consequente.
Sem diminuir a validade da adoção da proposta de Elias e Elizabeth da Rocha Barros, que poderíamos caracterizar como "epistemológica", acreditamos encontrar em Sérvulo Figueira uma perspectiva terapêutica mais abrangente para um diagnóstico, em linhas gerais, bastante semelhante. Embora não descarte a necessidade de um esforço de recontextualização, Sérvulo Figueira parece apostar a maior parte de suas fichas na fecundidade de uma certa margem de inevitável mal-entendido na tradução de uma produção teórico-clínica, de sua matriz originária, para contextos sócio-culturais diferentes.
Ao contrário de Elias e Elizabeth da Rocha Barros, Sérvulo Figueira deduz a tradução anistórica, "selvagem", das concepções teórico-clínicas vigentes nos centros psicanalíticos hegemônicos, por parte dos psicanalistas brasileiros, não uma ausência de psicanálise brasileira, mas "a impossibilidade da inexistência de uma psicanálise brasileira. A partir daí, prossegue, o problema relevante não é o das condições da existência da psicanálise brasileira, mas o das condições pelas quais os psicanalistas brasileiros poderão melhor discernir o seu perfil, dela se apropriando com maior legitimidade.
A tradução selvagem da psicanálise oficial para a cultura brasileira gera um campo conflituoso, prenhe de dificuldades e de potencialidades: "Adotamos modelos e ideais europeus (...). Mas, paralela e dissociadamente, (...) estamos alterando e pragmaticamente adaptando conceitos e procedimentos de modo a torná-los mais funcionais na nossa realidade cultural cotidiana e profissional".
Nesse contexto, a crítica epistemológica da psicanálise oficial, que teria por finalidade possibilitar o acesso ao solo histórico e conflituoso que lhe deu origem, embora indispensável, já não é mais encarada como a busca de uma ortodoxia perdida, mas sim como a busca de "restos" que poderiam ser levados a consequências mais radicais quando combinados com o pragmatismo brasileiro, este sim, segundo Sérvulo Figueira, o traço genuíno da psicanálise brasileira, a ser apropriado com mais força pelos psicanalistas brasileiros.
Com "A Contribuição dos Autores Argentinos", Júlio Campos nos oferece um histórico resumido, mas extremamente preciso, da história da implantação da psicanálise na Argentina, assim como de sua influência, tanto na formação de alguns pioneiros da psicanálise brasileira quanto na fundação das primeiras instituições psicanalíticas brasileiras. Acrescente-se a isso; para a obtenção de um texto de leitura instigante e agradável, um relato pessoal extremamente vívido de sua própria formação na Argentina na década de 70.
Fechando o volume, Marco Antonio de Lima Figueiredo, com "Psicanálise Brasileira: um Efeito Lacaniano?", presenteia os leitores com o artigo mais polêmico da coletânea. Destaca, no rastro dos efeitos do ensino de Lacan, a expansão quantitativa das instituições psicanalíticas e dos profissionais que disputam um mercado cada vez mais competitivo. Questiona a qualidade da formação psicanalítica liberada das exigências formais da psicanálise didática tal qual institucionalizada no seio da Associação Psicanalítica Internacional. Interroga o papel emergente da universidade como pólo de atração de psicanalistas em mal de reconhecimento institucional mais efetivo. Considera a progressão geométrica das instituições que se inspiram no lacanismo como símbolo do fracasso do projeto de transmissão da psicanálise tal qual concebido por Lacan. Trata-se, enfim, de um artigo que, lacanianos, de modo geral, não deveríamos deixar passar em brancas nuvens.

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