São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Praias de imanência

ÉRIC ALLIEZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num de meus últimos encontros com Gilles Deleuze, em janeiro de 1995, o filósofo resolveu aceitar, com a generosidade algo distraída que lhe era comum em tais casos, a idéia de uma tradução brasileira de um texto escrito há cerca de dez anos em homenagem a Maurice de Gandillac, publicado originalmente em "L'Art des Confins - Mélanges Offerts à Maurice de Gandillac" (Presses Universitaires de France). Eu acabara de lhe comunicar a publicação de um conjunto de artigos de Gandillac intitulado "Gêneses da Modernidade" -cuja idéia me fora dada pelo seminário "Modernidades da Filosofia Medieval", organizado por este último em 1989, no Rio. Mas o tempo passou, e o texto será lido num contexto infinitamente mais triste: fará parte da primeira homenagem à memória do filósofo morto recentemente: "Gilles Deleuze: uma Vida Filosófica" - 1925-1995 (dia 5, às 16h, no Centro Cultural Banco do Brasil, r. Primeiro de Março, 66, Rio de Janeiro). Poucos filósofos terão realizado de maneira tão afirmativa o que leremos a seguir, ou seja, que "os conceitos filosóficos", para quem os inventa ou esclarece, são também modos de vida e de atividade.
O leitor poderá ainda constatar como cada texto de Deleuze, mesmo (ou sobretudo) os aparentemente menores, funcionam como uma miniatura que retoma o conjunto da obra sob uma certa perspectiva constitutiva. Aqui temos o platonismo, com suas noções expressionistas de emanação e conversão, de "complicatio", de "explicatio" e de "Possest", que não cansam de reafirmar os "ímpetos de imanência da Terra através das hierarquias celestes", numa constante ameaça à Unidade transcendente. ("Ali o Ser é unívoco...") Mas é próprio da filosofia de Deleuze conduzir a imanência ao extremo da afirmação de uma vida feita apenas de "virtualidades", acontecimentos, singularidades, de "potência e beatitude completas", como escreve o filósofo em seu último texto publicado em vida, um post-scriptum sóbrio e luminoso que lança da beira do vulcão a última seta contra as metafísicas da Morte.
A imanência: uma vida...

GILLES DELEUZE
Há inúmeras descrições do "universo escalonado", que corresponde a toda uma tradição platônica, neoplatônica e medieval. Trata-se de um universo suspenso ao Uno como princípio transcendente, e que opera por uma série de emanações e conversões hierárquicas. Nele, o Ser é ambíguo ou analógico. Os seres, de fato, têm mais ou menos ser, mais ou menos realidade, de acordo com sua distância ou sua proximidade em relação ao princípio. Ao mesmo tempo, porém, uma outra inspiração atravessa o cosmos. É como se praias de imanência avançassem pelos estágios ou degraus, com a tendência de reunirem-se entre os níveis. Ali o Ser é unívoco, igual: os seres são igualmente ser, no sentido de que cada um efetua sua própria potência numa vizinhança imediata, por força da causa primeira. Não há mais causa remota: o rochedo, o lírio, a besta e o homem cantam igualmente a glória de Deus numa espécie de an-arquia consagrada. As emanações-conversões dos níveis sucessivos são substituídas pela coexistência de dois movimentos na imanência, a complicação e a explicação, nas quais Deus "complica todas as coisas" ao mesmo tempo que "cada coisa explica Deus". O múltiplo está no uno que o complica, assim como o uno está no múltiplo que o explica.
A teoria, sem dúvida, não deixará de conciliar esses dois aspectos ou universos, e sobretudo não desistirá de subordinar a imanência à transcendência, de medir o Ser da imanência pelo Ser da transcendência. Mas quaisquer que sejam os compromissos teóricos, há nos ímpetos de imanência algo que tende a transgredir o mundo vertical, a tomá-lo às avessas, como se a hierarquia engendrasse uma anarquia particular, ou o amor de Deus fosse a causa de um ateísmo interno e absolutamente próprio: a todo momento roçamos a heresia. E o Renascimento não deixará de desenvolver, de expandir esse mundo imanente que não se concilia com a transcendência sem ameaçá-la com um novo dilúvio.
É isso que nos parece tão importante na obra histórica de Maurice de Gandillac: a maneira pela qual ele pôs em destaque esse jogo de imanência e transcendência, esses ímpetos de imanência da Terra por meio das hierarquias celestes. "A Filosofia de Nicolau de Cusa" é um grande livro, e é surpreendente que não possa ser encontrado por falta de reedição. Nele, assistimos à eclosão de um conjunto de conceitos lógicos e ontológicos que caracterizarão a chamada filosofia moderna, de Leibniz ao romantismo alemão. Um exemplo é a noção de "Possest", que exprime a identidade imanente entre ato e potência. Essa aventura da imanência, essa concorrência entre imanência e transcendência é a mesma que perpassa as obras de Eckhart, dos místicos renanos ou mesmo de Petrarca. Desde o início do neoplatonismo, Gandillac insiste nessas sementes e nesses espelhos de imanência. Em seu livro sobre Plotino, um dos mais belos jamais escritos sobre o filósofo, ele mostra como o Ser procede do Uno, que no entanto não deixa de complicar todos os seres em si mesmo, ao mesmo tempo que se explica em cada um deles. Imanência da imagem contida no espelho e da árvore contida na semente: essas são as duas bases de uma filosofia expressionista. Mesmo na obra do Pseudo-Dionísio, o rigor das hierarquias reserva um espaço virtual às praias de igualdade, de univocidade, de anarquia.
Os conceitos filosóficos, para quem os inventa ou esclarece, são também modos de vida e de atividade. Reconhecer o mundo das hierarquias, mas ao mesmo tempo banhá-lo com tais praias de imanência, cujo efeito abala mais do que uma referência direta -essa é uma imagem de vida inseparável de Maurice de Gandillac. Há nele como que um homem do Renascimento. Há nele um humor vivo que se confunde justamente com esse tecido de imanência: complicar as coisas ou as pessoas mais diversas numa única e mesma tela, ao mesmo tempo que cada coisa, cada pessoa, explica o todo. Tolstói dizia que, para alcançar a felicidade, era preciso apanhar como numa teia de aranha -e sem nenhuma lei- "uma velha, uma criança, uma mulher, um comissário de polícia". Gandillac sempre exerceu e recriou uma arte de viver e de pensar. Este é seu sentido concreto de amizade (1). O mesmo que reencontramos em outra de suas atividades, a de "debatedor. Ao lado de Geneviève de Gandillac, ele deu novo alento aos colóquios de Cerisy: o escalonamento de conferências sucessivas inspirou um tipo de debates que traçam precisamente praias de imanência ou partes de uma única e mesma tela. As intervenções explícitas de Gandillac podem ser concisas, mas possuem um estranho conteúdo e uma riqueza que exigem sua compilação como fragmentos escolhidos. Tal conteúdo deve-se muitas vezes a seu caráter filológico -e aqui tocamos em outra das atividades do pensador: como filólogo, germanista e tradutor, Gandillac sabe que o pensamento original de um autor deve de alguma forma compreender o texto original e o texto derivado, ao mesmo tempo que o texto derivado deve a seu modo explicar o original (sem no entanto nenhum desenvolvimento suplementar). As traduções de Gandillac -principalmente seu "Zaratustra"- podem ter suscitado controvérsias, em razão de sua força característica: elas implicam toda uma teoria e uma concepção inovadoras de tradução, sobre as quais Gandillac não forneceu até agora senão indicações extremamente raras. Seja como for, é um único e mesmo objetivo que Gandillac persegue como filósofo, como historiador da filosofia, como professor, como tradutor e como homem.

NOTA:
1 Cf. "Approches de l'Amitié", in "L'Existence" (Gallimard)

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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