São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Cem anos do cinema é ilusão

CARLOS ADRIANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para Peter e Bernardo

1995 foi decretado o ano das comemorações do centenário do cinema. Adotando como marco a exibição de filmes, convencionou-se a data devido à inauguração do Cinematógrafo Lumière, a 28 de dezembro de 1895, em Paris. Mas acontece que o cinema já havia sido inventado antes.
Deste modo, o nascimento do cinema é visto como uma apresentação pública e paga, um espetáculo constituído como tal (notar que 1895 assistiu à expansão internacional do capitalismo e das multinacionais). Essa data pode fixar o nascimento do cinema como negócio, mas não como invenção.
Este debate escapa da esfera geopolítica -França (com o coletivo Cinematógrafo) ou Estados Unidos (com o individual Kinetoscópio). Trata-se antes de um conceito, um princípio de expressão; é mais que uma guerra de patentes ou atestados de paternidade.
Pela própria natureza do processo, identificar nesses primórdios a primazia única não é possível, uma vez que o presente conjugou conquistas passadas. Uma descoberta assim complexa não podia ser realizada por um homem só. A história (e a história do cinema não é exceção) não é feita apenas de fatos confirmados, mas também de lacunas (abertas)...
A definição de parâmetros analíticos sugere mais sobre o ponto de vista do princípio de escolha adotado do que sobre o próprio dado enfocado. O critério para se determinar o nascedouro do cinema segue o mesmo pre(con)ceito. A narração histórica é traída e atraída por silogismos e sociologismos.
Por que o marco é a primeira exibição pública e paga e não meramente a primeira projeção? Ou a primeira filmagem? Afinal, pode-se determinar a data de nascimento da música ou da pintura?
Em 1872, Stanford, milionário governador da Califórnia, fez uma aposta sobre o galope do cavalo. A demonstração do sábio francês Marey sobre o tema do trote (motivo de movimento), em 1868, gerou controvérsias no aristocrático meio hípico (um traço elitista já na origem da futura diversão popular). Duvidando do olho humano, Stanford recorreu à fotografia e ao inglês Muybridge para instituir uma contra-experiência.
Muybridge realizou as primeiras tomadas de vista decompondo o movimento numa série de instantâneos em 1878. Essas fotografias foram publicadas na revista "La Nature" e atraíram a atenção de Marey. Após aperfeiçoar o aparelho, em 1879/80, Muybridge partiu para a Europa, onde fez, em 1881, em Paris, uma apresentação para cientistas na casa de Marey. A projeção de sua experiência (disco de vidro com desenhos da série de fotografias via bizarra lanterna mágica) rendeu aos olhos da época imagens incríveis e naturais. Outra projeção, no ateliê do pintor Meissonier, provocou a indignação dos artistas acadêmicos ("a fotografia via errado").
Marey começou então suas memoráveis experiências. As provas projetadas de Muybridge decepcionaram-no, por não corresponderem à expectativa gerada pelas fotos estampadas na revista. Para ele, o método de Muybridge apresentava inconvenientes; submeteu-o então a uma crítica rigorosa, revelando os intervalos irregulares na sucessão imperfeita de imagens. Marey pretendia produzir ele mesmo provas mais precisas.
Com o Fuzil Fotográfico (1882) capt(ur)ou, contra luz, o vôo das aves sob o sol de Nápoles. Com o Cronofotógrafo de placa fixa, decompôs o movimento humano em uma série de imagens estáticas. Articulando objetiva e obturador num ritmo intermitente e regular, criou o Cronofotógrafo de placa móvel (1887), a primeira câmera moderna. Em outubro de 1888, Marey tomou em película de celulóide suas primeiras vistas, revelando à Academia de Ciências seu invento e as filmagens inaugurais em novembro de 1890. A re-visão de seus filmes feitos a partir de então revela qualidade estética e técnica, configurando-se como obras de rigor formal e pureza moderna.
Sua obra "Le Mouvement" (1894) consagrou apenas as seis últimas páginas à síntese do movimento, enquanto as outras 313 tratavam de sua análise (o que revela a natureza investigativa de suas preocupações). No livro, descreveu os aparelhos de Muybridge, mencionou a proposição do dr. Mach (fotografar um homem desde seu nascimento até sua morte para reconstituir em minutos seu envelhecimento), demonstrou as razões do fracasso de outros aparelhos e definiu as qualidades para um bom projetor.
Para Marey, "a verdadeira característica de um método científico é suprir a insuficiência de nossos sentidos ou corrigir seus erros; assim, a Cronofotografia deve então renunciar à representação dos fenômenos tal qual nós os vemos". Respondendo às interrogações de seu tempo, os filmes de Marey demonstram uma de suas teses: "A ciência e a arte se confundem na busca da verdade".
Industriais da fotografia, os Lumière começaram seus trabalhos com a chegada na França dos primeiros Kinetoscópios. Louis Lumière desenvolveu um mecanismo técnico, após combinar o filme perfurado 35mm de formato Edison e os ensinamentos de Marey e construiu seu Cinematógrafo (câmera, projetor e copiador), tomando as primeiras vistas a 19 de março de 1895.
Os primeiros filmes com fotografia animada projetados sobre tela surgiram durante experiências de laboratório -Muybridge (1879/81), Leprince (1888/89), Friesse-Greene (1889/93), Edison e Dickson (1888/93), Marey e Demény (1888/93).
Mesmo que o despertar industrial e comercial da nova descoberta fosse pouco pressentido, os financiadores da eletricidade, das estradas de ferro, dos produtos químicos da fotografia, sustentavam as sociedades que sonhavam estabelecer esse truste.
Em 1896, já se espelhavam pelo planeta aparelhos com patente registrada (Lumière, Edison, Méliès, Pathé, Gaumont, Biograph), lançando as bases da indústria cinematográfica.
O cinema, distração típica de uma época monopolista, é, desde seu nascimento enquanto indústria do espetáculo, objeto de tentativas de monopolização. Os primeiros empreendimentos de cinema tiveram uma característica comum: em primeiro plano estava o comércio de aparelhos, só depois vinha a produção de filmes (vista como meio e não como fim).
Ao circunscrever a invenção do cinema ao âmbito de sua exploração comercial, essa idéia já decreta a morte do cinema como comunicação de alto potencial criativo. Duas décadas depois dessa diáspora, as vanguardas contestariam tanto o desvio diegético (o filme como servidor da literatura e do teatro) e o estatuto industrial (o filme como produto de uma fabricação em massa) como manifestariam a vocação inconteste do cinema (uma forma independente e pessoal de expressão artística).
Há mais que uma metáfora na recusa ética de Marey contra o comércio de glórias. Na relação entre ciência e cinema, revela-se (e releva-se) seu caráter de descoberta inaugural, sua invenção, como meio de conhecimento, como experiência primeira.
Na época de efêmeras efemérides, o grosso da produção corrente não merece comemoração: trata-se de um cinema que mais e mais emburrece e empobrece a sensibilidade humana. O cinema morre de sua mediocridade quantitativa, escreveu o filósofo.
Para a classificação histórica, forjaram-se nomes como pré-cinema e cinema primitivo. Os filmes deste cinema (e do cinema comprometido consigo mesmo) têm o encanto da revelação, a inocência (não-ingênua) do ato desbravador. Não seria o atual festim histérico e estéril de efeitos especiais, que apela para os instintos mais intestinais das pessoas, uma coisa muito mais primária?
Sem ver luz no fim do túnel (tom dos tempos), um pioneiro Lumière afirmava já em seus primórdios que o cinema era uma invenção sem futuro. Pelo nível da produção fílmica de hoje, não há dúvida: apesar de centenário, o cinema parece que ainda não foi realmente inventado.
Cada filme (cada experiência de um filme) deveria ser uma investida investigativa na essência do cinema, uma celebração das humanas possibilidades inventivas do cinema -um momento verdadeiro de entusiasmo estético e extático.

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