São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Isonomia da competência

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Como o Brasil, a Inglaterra discute uma estratégia para mudar a sua Constituição. Ocorre que lá a Constituição não é escrita, enquanto que aqui ela tem 315 longos e rebuscados artigos.
Como mudar uma Constituição que não existe do ponto de vista formal? Teoricamente, princípios não-escritos são flexíveis -e de fácil modificação-, enquanto os escritos são rígidos -e de difícil mudança.
Vejam a dificuldade que o Brasil está tendo para mudar a Constituição de 1988. Aquela foi uma Carta pródiga em definir direitos e muito pobre em garantir meios.
A saúde, por exemplo, está ali definida como um direito de todos os cidadãos. Mas como assegurar esse nobre direito se menos da metade da população contribui para a seguridade social?
Sonhar é fácil. Realizar é difícil. Isso é assim em toda parte. Vejam a França: arranjaram dinheiro para explodir quatro bombas atômicas em menos de um ano, mas não há dinheiro para pagar os aposentados. O governo do Brasil tem US$ 1,5 bilhão para fazer o projeto Sivam, mas a Polícia Federal não tem dinheiro para comprar combustível.
A revista "Economist" da semana passada diz muito bem que para escrever uma Constituição sedutora basta uma boa caneta, muito papel e um saco de sonhos.
Com a Constituição de 1988, o Brasil provou ser impossível passar dos sonhos para a realidade por simples obra do Poder Legislativo. A ingovernabilidade criada foi patente. Os Estados ganharam novos recursos, mas as grandes responsabilidades ficaram com a União.
O pior é que os beneficiados não fizeram o que deviam; se endividaram até o pescoço, e, hoje, estão sendo comidos pelos juros.
Os municípios ganharam liberdade para se multiplicar, independentemente dos recursos comunitários. Os poderes Judiciário e Legislativo conquistaram autonomia para definir seus próprios proventos. E "vive la isonomie"!
As despesas com pessoal garantidas pela Constituição cresceram muito além das possibilidades dos governos. O corporativismo ganhou sobrevida com os tais direitos adquiridos, rebatizados pelo presidente Fernando Henrique de "abusos adquiridos".
Os tributos passaram a atuar em cascata, ignorando os seus impactos sobre os custos da produção.
O Brasil provou em definitivo que escrever uma bela Constituição é fácil. O difícil é conviver com ela. Mais difícil ainda é mudar uma Carta utópica e detalhista. O novo governo já vai completar um ano e a grande maioria dos parlamentares continua bloqueando a reforma constitucional.
Isso vem de longe. Cada dia é uma. Já foi o impeachment, o escândalo do Orçamento, as eleições majoritárias etc. Agora é o Sivam.
Está na hora de mais realismo e menos utopias. Chegou o momento de se praticar a isonomia não só no campo dos objetivos e dos direitos, mas, sobretudo, dos meios e dos deveres. O povo precisa compreender isso tudo.
Essa é uma tarefa pedagógica cuja liderança cabe, sobretudo, aos parlamentares e à imprensa. É nesse campo que se vai demonstrar a única isonomia que realmente interessa à nação: a isonomia da competência.

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