São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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A democracia no Chile

HERALDO MUÑOZ

Recentemente o Chile tem aparecido nos meios de comunicação e perante a opinião pública internacional ora como um modelo de recuperação e consolidação democrática, ora, devido a fatos isolados, como um país com uma institucionalidade democrática frágil, afetado por um problema de convivência entre o governo civil e as Forças Armadas.
Na verdade, para compreender o que acontece no Chile atualmente, é necessário entender que o país tem experimentado nos últimos anos vários processos diferentes de transição, que se sobrepõem, coexistem e se potencializam mutuamente, sendo dois deles mais importantes.
Primeiro: o Chile experimenta uma transição a um novo tipo de regime democrático. Estão sendo discutidas, intensamente, diversas modificações estruturais no sistema político, nas estruturas e instituições democráticas fundamentais, referentes, por exemplo, ao parlamentarismo e presidencialismo; modernização do Estado e probidade pública; reforma do Poder Judiciário; sistema eleitoral etc.
Esse processo é intenso no Chile, não somente pela experiência traumática da ditadura, que obriga a reconsiderar o papel de estruturas, instituições e funções que pudessem haver colaborado para o colapso da democracia, mas também pela nova liderança política, onde se destacam vários intelectuais.
Segundo: o Chile ainda vive uma transição para a plena democracia, existem desafios pendentes no processo de transição do autoritarismo à democracia. Em parte isso se deve ao fato de que ocorreu uma "transição pactuada" para a democracia. De fato, à derrota política do autoritarismo no plebiscito de 1988 seguiu-se uma negociação entre a oposição vitoriosa e o regime militar, com o objetivo de introduzir emendas na Constituição de 1980 -elaborada pelo governo militar-, as quais, logo depois, foram aprovadas em um referendo nacional.
O governo do presidente Patricio Aylwin (1990-1994), sustentado na "Concertação de Partidos pela Democracia", teve como propósito essencial a redemocratização do país, por meio da busca da reconciliação nacional.
A Constituição de 1980 voltou a ser modificada e o governo Aylwin implantou diversas medidas para democratizar o poder municipal e reparar os familiares das vítimas mortas por agentes do Estado; adotou medidas para facilitar o regresso ao Chile dos exilados e criou instituições para favorecer os direitos das mulheres, dos jovens e dos povos indígenas. O bem-sucedido resultado desse processo esteve baseado, em grande parte, no logro de um consenso das principais forças políticas e sociais sobre a necessidade de conseguir a estabilidade democrática e manter a modernização e os critérios de mercado como fundamentos do modelo econômico.
Com a eleição do presidente Eduardo Frei, o processo de democratização no Chile tem prosseguido desde 1994.
Recentemente, no entanto, registraram-se algumas tensões à raiz da condenação pela Corte Suprema, a sete anos de prisão, dos principais chefes da polícia secreta da ditadura, oficiais da reserva general Manuel Contreras e brigadeiro Pedro Espinoza, e devido ao rechaço de Contreras à sentença e ao seu reiterado uso de recursos para não ser levado à prisão, o que configurou -segundo observadores externos- um questionamento do próprio Estado de Direito e da autoridade civil no Chile.
O caso Contreras provocou um intenso debate político sobre a conveniência de pôr fim aos temas pendentes na área dos direitos humanos e sobre a necessidade de introduzir modificações adicionais na Constituição de 1980, para que a democracia possa desenvolver-se sem entraves nem tutelas.
O presidente Frei enviou, em agosto, três projetos de lei ao Congresso: o primeiro fixa normas para contribuir ao esclarecimento da verdade em relação aos detidos -desaparecidos e outras situações de direitos humanos-, agilizando os procedimentos em tais casos; o segundo modifica a lei orgânica das Forças Armadas e dos "Carabineros" para permitir que o presidente da República exerça plenamente as prerrogativas que sempre teve o chefe de Estado no Chile; e o terceiro propõe mudanças na composição do Tribunal Constitucional e do Conselho de Segurança Nacional e introduz a eleição democrática para todos os integrantes do Senado, com o que se eliminariam os senadores "biônicos".
O atual momento político revela, como já foi dito, que o país ainda está passando por um complexo processo inter-relacionado de transições, sendo a principal o trânsito do autoritarismo para a democracia. Sem dúvida, o Chile ainda não está plenamente reconciliado e sua democracia é imperfeita.
Porém há importantes sinais de fortaleza na democracia reconstruída. Exemplo: cabe perguntar em quantos países um governo de transição democrática é capaz de colocar na prisão o ex-chefe e o ex-subchefe da polícia secreta da ditadura sem que tenha existido uma derrota militar dessa ditadura.
A maioria dos chilenos visualiza o futuro com um cauteloso otimismo, pois o país foi capaz de superar desafios difíceis na história recente. Por isso estou certo de que o Chile poderá completar com êxito o processo de transição, ampliando a democracia com desenvolvimento econômico e equidade social.

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