São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Giannotti mostra seu 'marxismo tucano'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A filosofia pode no máximo limpar o terreno, abrir o caminho para a política e a moral. Ela deixa o mundo como está, mas pode nos ensinar a abandonar a idéia de que podemos controlar a alienação".
A frase foi dita pelo filósofo José Arthur Giannotti, 65, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), quase no fim da sua conferência "A Lógica da Emancipação", que encerrou na sexta-feira o ciclo de palestras sobre "A Crise da Razão", promovido pela Funarte desde outubro no Rio e em São Paulo.
Para um evento que, durante dois meses, ofereceu um pouco de tudo aos curiosos, num frenético "pot-pourri" intelectual, o final não poderia ter sido melhor.
Torcendo talvez um pouco a interpretação para o lado jornalístico, o tema real da palestra de Giannotti pode se resumir na seguinte questão: o que deve fazer hoje um intelectual de esquerda (comprometido historicamente com a crítica do capital) quando um dos seus pares chega à Presidência ao mesmo tempo em que a cena mundial aponta uma vitória sem precedentes do capitalismo?
Foi este assunto que Giannotti tratou de enfrentar, ainda que sua palestra tenha filtrado o tema pelo jargão peculiar do filósofo, que não costuma facilitar as coisas.
Giannotti se ocupou de demonstrar, seguindo passo a passo o que já havia escrito em 1983, que a teoria do valor marxista está cientificamente morta. Isso se deve, segundo ele, às características do capitalismo contemporâneo, entre elas o monopólio do progresso técnico, que não se difunde mais como uma mancha de óleo até a periferia do sistema, à incomensurabilidade de trabalhos heterogêneos, que impede que se fale em trabalho homogêneo abstrato etc.
Em uma palavra, diante da irracionalidade do capitalismo atual, que tratou de desmantelar até mesmo as boas ilusões que faziam funcionar o capitalismo clássico, Giannotti pergunta o que podemos pôr no lugar. "Deveria ser instalada uma engenharia social transparente em que as necessidades últimas dos homens devessem ser satisfeitas?".
Ora, responde Giannotti, isso já se sabe no que deu: no totalitarismo nazista e sobretudo stalinista.
A saída então proposta por Giannotti é, por assim dizer, paliativa. Teríamos que controlar o bicho, criar mecanismos para agir dentro do capitalismo a fim de minimizar seus efeitos monstruosos, sem no entanto acreditarmos, como querem alguns, que podemos nos livrar da alienação ou do fetichismo da mercadoria.
Ao filósofo, a tarefa que se coloca hoje é de formular uma "doutrina crítica dos erros sistemáticos a partir dos quais se armam certas formas de sociabilidade". Tarefa, portanto, semelhante à dialética transcendental kantiana, quando tratava de apontar as ilusões necessárias ao conhecimento.
Ao político, a missão é similar. "Para que se conviva com as alienações da produção mercantil, para que seus efeitos sejam cada vez mais circunscritos e podados, é preciso aprofundar o sistema político representativo, a fim de que ele democratize as decisões de política econômica", defendeu.
Voltamos então à questão de início. É porque desobrigou-se de fazer a crítica do capital (isso não teria mais sentido) que Giannotti pode reconhecer na filosofia uma espécie de linha auxiliar da prática política. Eis como o marxismo de cátedra dá as mãos à social-democracia tucana. Ao espectador abelhudo resta desconfiar que, neste momento histórico, nem o primeiro parece capaz de continuar sendo marxismo, nem a segunda conseguirá cumprir seus desígnios sociais-democráticos. Veremos.

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