São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
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Saem no Brasil gravações de Maria Callas

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A estratégia musical de Bizet estabelece tensões quase insuportáveis, que levam o ouvinte não só a aceitar, mas positivamente desejar a morte de Carmen."
Extraída de um ensaio sobre as "Políticas Sexuais na Música Clássica", esta frase resume o argumento da musicóloga Susan McClary. Para ela, Carmen é uma grande invenção erótica de Bizet.
Ritmos lânguidos combinados a uma dicção entre popular e erudita, fazem dela uma contradição, que só pode se resolver com a morte da protagonista.
Imagem por excelência da mulher sensual, ou fatal, Carmen sintetiza uma fantasia masculina, que persiste até hoje.
Transitando entre a vida e a arte, não é menos fantástica a imagem de Maria Callas (1923-1977), sua maior intérprete. Também ela sintetiza uma "mulher que não existe" -a não ser na fantasia.
A EMI lança gravações de Carmen de Bizet e Tosca de Puccini interpretadas por Maria Callas, em versões remasterizadas.
A gravação de Carmen data de 1964, que é o último ano do curto auge de Callas. Apenas sete anos - de 1951, quando estreou no La Scala, até 1958, ano em que redescobriu o Pirata de Bellini -, foram o bastante para fazer de Maria Callas a maior expressão do canto lírico deste século.
Mas as outras são sobrenomes, que só os aficcionados conhecem; e Maria Callas é Maria Callas.
Para os músicos, sua fama se deve, inicialmente à redescoberta do repertório italiano do início dos século 19: Rossini, Bellini, Donizetti. Ninguém, até então, havia cantado essas óperas com semelhante agilidade e precisão.
Mas desconfio que a persistência do mito de Callas tem mais a ver com a coincidência entre as seduções de outro registro, mais grave, em óperas como Carmen e Tosca, e a vida pessoal que ressoa, musicalmente, nessas gravações.
O virtuosismo de Callas cantando a "Habanera" de Bizet é algo de tirar o fôlego: cada nota tem um timbre próprio, as melodias vão se curvando e mudando de cor na medida de sua malícia.
As seduções musicais e eróticas de Callas se combinam em Carmen com o exotismo cigano e atrativos da cultura popular.
"A mulher não existe", escreveu memoravelmente Lacan.
Entre as mulheres que os homens inventaram está a Carmen de Bizet. Ela é um emblema, uma alegoria de alguma coisa que toda mulher parece saber, e que o homem não sabe. Transitando entre a vida e a arte, Callas é um enigma, que ganha forma em linhas de notas e nas fantasias da voz.

ARTHUR NETROVSKI é professor de pós-graduação em Comunicação e Semiótica e coordenador do Centro de Estudos da Cultura da PUC/SP.

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