São Paulo, sábado, 9 de dezembro de 1995
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Um ano e meio de Real: a ameaça do déficit

RUBENS RICUPERO

Da semana que acabo de passar no Brasil trouxe duas impressões principais.
A primeira, positiva, é a gradual consolidação do Real, quase 18 meses após seu lançamento. Desde o meu desembarque no Galeão, a cada minuto encontrei pessoas desconhecidas que me abordavam para dizer como a incipiente estabilidade estava mudando a vida do cidadão comum.
Vai-se apagando, aos poucos, a memória da turbulência permanente. Todos se dão conta, ao contrário do que se dizia, que o plano não era um artifício eleitoral. Ele veio para ficar e para valer.
As queixas se concentram nos altos juros, aperto do crédito e redução da atividade econômica. O que me leva à segunda impressão do reencontro com o Brasil, esta, infelizmente, de caráter negativo.
Em contraste com o ano passado, quando praticamente havíamos zerado o déficit público, descubro com preocupação que caminhamos agora para um desequilíbrio de uns 3% do PIB, dos quais 2,5% provocados por Estados e municípios.
As duas impressões, faces opostas da mesma realidade, se condicionam uma à outra e expressam, no fundo, uma verdade amarga que muitos não querem entender.
Sem a solução definitiva para o déficit, a estabilidade produzida pelo Real será sempre precária e ameaçada. Para não voltar à UTI hiperinflacionária, o governo terá de usar a única terapêutica a seu alcance: os juros altos, o controle do crédito, a repressão dos gastos orçamentários.
Com isso, os preços não sobem, mas a economia se desaquece, o desemprego aumenta, adiam-se os investimentos para solucionar os problemas sociais.
Uma parte importante da solução para valer do problema do déficit terá de vir da resposta a ser dada pelo Congresso às reformas propostas pelo Executivo: a da Previdência, a administrativa e a dos impostos.
Ainda, porém, que essa resposta seja cabal e satisfatória, de nada ela servirá se os governos locais continuarem a desfazer com uma das mãos o trabalho que, no âmbito federal, tentamos fazer com a outra.
Como explicar que, após a redistribuição de receita tributária efetuada pela Constituição de 1988, os Estados e muitos municípios não consigam largar o vício deficitário?
Um governador amigo meu sugeriu-me uma possível resposta. Na euforia do Real, a partir de novembro do ano passado, alguns governos estaduais dobraram, no apagar das luzes, a folha salarial! Afinal, a arrecadação tinha crescido espetacularmente, às vezes até em 40%, mas mesmo assim não foi o bastante para cobrir o excesso de largueza.
O aumento dos juros, tornado inevitável pelo déficit e pelo aquecimento da economia, explica o resto.
Nos oito primeiros meses de 1995, a dívida contratual de São Paulo explodiu de US$ 37 bilhões para US$ 48 bilhões e, sem a contratação de nenhum empréstimo novo, ela incha US$ 500 milhões apenas pelo efeito da taxa de juros.
A dívida total de São Paulo é hoje de US$ 58 bilhões, cinco vezes a receita tributária do Estado e próxima do total da dívida externa brasileira junto aos bancos privados antes da renegociação do plano Brady (US$ 62 bilhões).
Retirei esses dados do excelente trabalho intitulado "Dívidas Elásticas", publicado pelo jovem economista do Banco Central Marcos J. Mendes no "Braudel Papers", do Instituto Braudel de Economia Mundial.
Nesse estudo, em colaboração com Norman Gall, lembra-se que o Banco Mundial havia estimado que os Estados brasileiros deviam, no início de 1995, cerca de US$ 112 bilhões. Metade dessa quantia não tinha sido paga, o que elevara a dívida, no final do corrente ano, a quase US$ 140 bilhões, sobretudo devido aos juros.
Complica o panorama a circunstância nada casual de que 92% dessa dívida está concentrada apenas nos quatro Estados mais ricos e politicamente poderosos: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Tampouco é difícil entender por que esse acúmulo de endividamento nas zonas mais prósperas. Os quatro campeões da dívida gastam de 75% a 81% da receita com salários e pensões.
Quando se olham cifras desse porte, é impossível não concluir que deve haver algo de profundamente doente com o modelo do federalismo brasileiro.
Neste nosso modelo, o controle do endividamento cabe ao Senado, o que é, com perdão da imagem, um pouco como confiar ao bode a guarda da horta.
Os Estados, por sua vez, já demonstraram à saciedade que são incapazes de exercer autodisciplina. Em matéria de gastos de pessoal, especialmente, é óbvio que ainda não pusemos em prática o conselho do padre Antonio Vieira, segundo o qual o remédio não é aumentar a fazenda, mas sim encolher a cobiça.
Diante da inoperância do controle legal-administrativo, Marcos J. Mendes sugere, com razão, que a única saída seria uma disciplina de mercado capaz de prevenir o endividamento excessivo, por meio de mecanismos que recompensem com taxas menores de juros os tomadores de empréstimo mais prudentes.
A fim de ser eficaz, esse mecanismo precisaria ter o poder de excluir do mercado os devedores relapsos e necessitaria de informações transparentes acerca das condições dos tomadores. Acima de tudo, seria indispensável, como diz o estudo, que o devedor incorrigível não "pudesse vir a ser socorrido por operações financeiras de salvamento.
Neste momento de afirmação mundial da primazia do mercado, não seria hora de administrar aos Estados brasileiros uma dose desse salutar medicamento?

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