São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 1995
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Pasta rosa, faxina grossa

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A imprensa está acesa com a sucessão de escândalos e intrigas no governo federal. A atenção se concentra, como sempre, nos aspectos mais pitorescos: vazamentos, conversas comprometedoras, grampos etc.
E realmente há coisas espantosas. O senador Antônio Carlos Magalhães atribuiu o vazamento da famosa pasta rosa à ação, no Banco Central (BC), de "marginais em nível de diretoria". Enquanto a diretoria do BC digere mais esse sapo monumental, ACM ameaça, mais uma vez, com dossiês e denúncias contra o banco.
Perguntado sobre as declarações do senador, o presidente da República considerou "justa" a sua indignação e, ao mesmo tempo, manifestou "confiança" na diretoria do BC. Ou seja, subiu na muralha da China. Varões de Plutarco, "tutti quanti"!
Pasta rosa é um antigo produto de limpeza, usado para arear panelas e fazer faxina grossa. O setor público no Brasil requer uma faxina desse tipo, não só para limpar a crosta de corrupção e irregularidades, mas, sobretudo, para ajustar as finanças públicas e consolidar o processo de estabilização.
É desse segundo aspecto que quero falar um pouco. Dados divulgados recentemente pelo governo revelaram deterioração impressionante da posição fiscal. Entre janeiro-setembro de 94 e janeiro-setembro de 95, o setor público consolidado (incluindo governo federal, BC, governos estaduais e municipais e empresas estatais), passou de um superávit operacional de 2% do PIB a um déficit de 4,4% (quando se usa o IGP-DI para estimar os juros reais).
Uma deterioração de nada menos que 6,4% do PIB em apenas um ano! Só parte disso pode ser atribuída à carga de juros, que aumentou de 3,5% para 5,4% do PIB nesse período.
Até que ponto esses resultados ameaçam o programa de estabilização? A resposta a essa questão não é trivial, uma vez que a ligação entre déficit fiscal e taxa de inflação é sabidamente muito frouxa, especialmente no curto prazo.
Muitos economistas, especialmente à esquerda do espectro político-ideológico (onde reina, às vezes, a mais crassa ignorância em matéria econômica), tendem a minimizar a importância da questão. Alega-se, por exemplo, que o déficit e a dívida do setor público brasileiro não são altos quando comparados aos dos países desenvolvidos.
De fato, em 1994 o déficit público médio nos sete principais países desenvolvidos (Grupo dos Sete, G-7) foi de 3,6% do PIB e de 5,5% do PIB na União Européia. A dívida pública líquida alcançou 40% do PIB no G-7 e 56,9% do PIB nos principais países da Europa Ocidental. No Brasil, a dívida líquida do setor público consolidado correspondeu a apenas 30,2% do PIB em setembro de 95, segundo dados oficiais.
A julgar por esses números, o Brasil não estaria tão longe de enquadrar-se nos critérios de performance fiscal exigidos para a unificação monetária européia pelo tratado de Maastricht! E até poderíamos dar umas aulas ao primeiro-ministro Alain Juppé, cujas tentativas de ajustar a França a esses critérios acabam de desencadear uma grande rebelião.
Infelizmente, essas comparações internacionais estão repletas de falácias. Por exemplo, não se pode comparar o déficit operacional do setor público brasileiro (conceito mais utilizado no Brasil, que só considera as despesas reais de juros) com o déficit público nominal dos países desenvolvidos (que considera despesas totais de juros e é mais usado em países de inflação tradicionalmente baixa).
No conceito nominal, o déficit público brasileiro alcançou 6,9% do PIB em janeiro-setembro deste ano. No conceito operacional, que não é utilizado regularmente nos países desenvolvidos, o déficit médio no G-7 deve andar por volta de 2,5% do PIB.
Além do mais, as estatísticas fiscais brasileiras, especialmente as que se referem ao setor público consolidado, devem ser vistas "cum grano salis".
No início de 1985, o governo do general Figueiredo, com beneplácito do FMI, divulgou números que mostravam um superávit operacional de 0,2% do PIB para o setor público como um todo em 1984. Alguns economistas heterodoxos desavisados usaram esse número para reforçar a sua convicção de que a inflação brasileira era puramente "inercial, contribuindo assim para preparar o caldo de cultura intelectual que levaria ao fracasso do Plano Cruzado em 1986.
Posteriormente, o déficit operacional de 1984 foi revisto para 2,5% do PIB. Um pequeno engano equivalente a 2,7% do PIB!
Seja como for, uma coisa é um déficit público de 4% em uma economia desenvolvida e estabilizada, cujo setor público tem boa reputação e amplo acesso a crédito de longo prazo. Outra, completamente diferente, é um desequilíbrio dessa ordem numa economia que mal começa a emergir de uma gravíssima crise inflacionária, na qual o governo tem (e terá por alguns anos) acesso bastante limitado a financiamento de prazo mais longo.
Sustentado pela combinação de câmbio sobrevalorizado e juros altos, o Plano Real parece ter se tornado potencialmente mais vulnerável a ataques especulativos. É o que sugere a evolução da base monetária ampliada (que corresponde à soma da base restrita com os depósitos compulsórios em espécie e os títulos federais) comparada à evolução das reservas internacionais no BC.
Em junho de 1994, logo antes da introdução do real, as reservas equivaliam a 57% da base ampliada. Em outubro de 1995, essa relação estava em 42%, a despeito do crescimento extraordinariamente rápido das reservas nos meses recentes.
Pasta rosa, rápido! No médio prazo, não há estabilização que se sustente sem disciplina fiscal.

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