São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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Lógica da emancipação

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Pouco importa a quantidade de bens de que os indivíduos carecem, ou os custos que estão dispostos a pagar para obtê-los. Posto que a produção se "performa" na base de uma divisão social do trabalho existente, posto que os trabalhadores podem saltar deste para aquele ramo segundo suas conveniências e conforme venham a ter acesso às novas tecnologias, a oferta se ajusta à demanda, na medida em que todos aqueles que trabalham abaixo de um intervalo que gira em torno da produtividade média social tendem quer a mudarem de ramo produtivo, quer a serem excluídos do mercado. Suponhamos que um produtor consegue operar com uma produtividade extraordinária, o valor agregado do produto, como sabemos, vai ao chão, o que impede seus concorrentes de completarem a cesta básica de que precisam para viver. Estes tratam então de produzir segundo a nova técnica ou mudam de profissão ou também ficam fora do sistema produtivo. Não reside aqui, nesta relação permanente de poder, o segredo da perdurabilidade da ilusão?
A descoberta desse mecanismo de ajuste prático e objetivo, em que os agentes se tornam vicários ou inúteis, teve enorme impacto no pensamento do século 18 e deu origem ao conceito de "bürgelische Gesellschaft. Hegel pode fazer de todo o processo um conceito porque para ele um conceito já é juízo em potência. Mas como manter esta concepção quando nos apartamos de sua tese de que todo objeto finito é momento da Infinidade e do Absoluto? Resta-nos a tarefa de compreender o sentido desse procedimento de ajuste como forma social de mensuração.
Ora, se medir é também seguir uma regra, somos surpreendidos pelo fato de que a regra responsável pela constituição do valor das mercadorias se configura unicamente no final de cada etapa do processo produtivo. O resultado da mensuração afeta a estabilização de seu metro. Mas que metro pode vir a ser um trabalho social abstrato? Uma ilusão necessária de equalização que se desenha na base duma relação objetiva de exclusão e de poder. E tal exclusão se torna ainda mais feroz quando a troca, em vez de relacionar dois produtores, põe em contato o dinheiro como capital e a mercadoria como força de trabalho, pois este conúbio de duas mercadorias tratando de se igualar percorre um processo mais complexo de corte do desigual, na medida em que a igualdade da troca se assenta nas desigualdades necessárias para a constituição de um excedente econômico.
Obviamente, essas observações elementares são insuficientes para a inteligibilidade do capitalismo contemporâneo, nem se poderia esperar que o fetichismo da mercadoria, cuja articulação é feita no modo de produção simples de mercadoria, se manifeste como tal no sistema completo. O próprio Marx nos ensina que ele se dá no modo pelo qual o trabalho produz o salário, o capital, o lucro e a terra, a renda. E para os dias de hoje ainda seria preciso completar e sofisticar nossa análise e examinar como pode funcionar este fetichismo quando a produção se faz negando um dos pressupostos do modo de produção simples de mercadoria.
Atualmente não é todo o mundo que tem acesso às tecnologias de ponta, de sorte que se reduz a "vicariedade" dos produtores efetivos. Mas a breve análise que acabamos de fazer já nos basta para mostrar como relações sociais podem se armar na base de ilusões necessárias. E, se as relações capitalistas de produção são atravessadas por um erro metafísico, torna-se impossível capturar seu sentido exclusivamente do ponto de vista científico, sem que se faça desde logo a crítica da positividade das relações capitalistas contemporâneas. No entanto, se esta positividade se aliena em virtude de associações entre indivíduos que julgam reiteradamente de forma incorreta, essa crítica, do ponto de vista teórico, só pode ser feita por uma dialética transcendental: uma doutrina crítica dos erros sistemáticos, a partir dos quais se armam certas formas de sociabilidade. Erros sistemáticos sob a aparência de acertos, porque cada acerto se faz por um processo violento subjacente.
Haveria outras formas de fetichismo além daquele das mercadorias? Tudo parece indicar que também o Estado, como um sistema jurídico existente e ao mesmo tempo normativo, que julga os indivíduos do ponto de vista abstrato do homem equânime e racionável ("from the point of view of the fair and reasonable man", como dizem os juristas ingleses) também constitui uma ilusão dessa espécie. Igualmente, isto parece acontecer com a idéia de um sujeito livre e autônomo, vale dizer, capaz de julgar a si mesmo a partir das normas que ele próprio se impõe. Mas estas são apenas sugestões, pistas a serem perseguidas em trabalhos mais compenetrados. Não estou neste texto apresentando-lhes resultados de investigações cuidadosamente meditadas, mas tão-só estimulando-os a retomar certas teses do passado que parecem ter sido superadas com a derrocada do marxismo.
Sugerida a possibilidade de uma dialética transcendental, cabe-nos então examinar a viabilidade de uma crítica ao sistema capitalista que, desarticulando a positividade das relações sociais pelas quais ele vem a ser travado, logre ainda estabelecer parâmetros para que essas relações possam ser julgadas do ponto de vista da justiça.
Se tomássemos o homem como animal racional, no sentido clássico da palavra, isto é, dotado de uma capacidade, a razão, de chegar aos últimos fins, vale dizer, ao incondicionado, e daí derivar o que devemos e o que não devemos fazer, então a tarefa que nos impõe a irracionalidade do sistema capitalista consistiria em suprimir de cabo a rabo o fetichismo da mercadoria, sob qualquer forma que ele se apresente.
No seu lugar deveria ser instalada uma engenharia social inteiramente transparente, em que as necessidades últimas dos homens devessem ser satisfeitas. Mas qual é a razão que hoje em dia nos parece capaz de determinar inquestionavelmente o fim último do homem neste mundo? Que razão poderia, sem se expor ao ridículo, proclamar o fim da história, o fechamento de um ciclo civilizatório, que começasse da idade da pedra e terminasse na crise global do capitalismo? A experiência dos dois regimes totalitários, o nazismo e o stalinismo, que atravessam este infeliz século 20, nos mostra que as políticas que se pretenderam integralmente racionais resultaram numa violência inédita e numa completa subordinação das liberdades individuais a um partido, o único detentor de qualquer racionalidade. Sob este aspecto, o pensamento político liberal e radical -John Rawls é o campeão dessa tendência- teve o mérito de tomar como ponto de partida o fato de que hoje em dia várias concepções racionais de sociedade competem entre si, de sorte que qualquer proposta moral e política precisa articular-se tendo em vista este fato. O princípio da tolerância está na base da análise de uma política democrática.
Para evitar que a multiplicidade das razões conduza ao irracionalismo, Rawls distingue, de um lado, o homem racional ("rational"), tal como é pensado pelas teorias da escolha racional, que concebem o agente social como um ser capaz de justificar individualmente seus fins e os meios necessários para obtê-los; de outro, o homem racionável ("reasonable"), dotado de uma sensibilidade moral, que o leva a se comprometer com uma cooperação social equitativa, vale dizer, submetida ao princípio de justiça como equidade (John Rawls: "Political Liberalism", págs. 48 e segs.). Dado este princípio, ele requer que a sociedade seja bem-ordenada, vale dizer: 1) que todos os seus membros conheçam e aceitem os mesmos princípios de justiça; 2) que sua estrutura básica, isto é, suas principais instituições políticas e sociais, seja publicamente conhecida; 3) que os cidadãos tenham um sentido normal e efetivo de justiça que os leve a endossar essas instituições principais (idem, pág. 35).

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